Precisamos falar sobre Severina
por Ana Carolina Garcia, Diego Alex Toloto e Duda Sansão
Capa: Suzana e os Anciãos, por Artemisia Gentileschi
Educa a criança no caminho em que deve andar; e até quando envelhecer não se desviará dele (Bíblia – Provérbios 22:6).
Ensina a criança que o abusador teve motivos para abusá-la; e até quando envelhecer ela continuará sendo abusada.
Ensina a criança a amar seu abusador; e até quando envelhecer ela continuará sendo abusada e amando os seus abusadores.
Ensina a criança que o abusador tem problemas; e até quando envelhecer ela continuará se sentindo culpada por ter sido abusada.
Ensina a criança que o abuso contra ela não foi nada; e até quando ela envelhecer não saberá se defender de abusos. (Diego Alex Toloto)
Um grito contido, abafado, entalado na garganta: essa é a realidade que conduz a vida da maior parte das pessoas que sofreram ou sofrem abuso sexual. O silêncio é exigido pelo abusador desde o primeiro (ou único) abuso. Há muito mais violência do que se possa imaginar no pedido de silêncio, ainda que mascarado de confidencialidade, com uma tentativa cínica de proximidade afetiva com quem acabou de sofrer um abuso sexual. Muitas vezes, este pedido vem acompanhado de série de ameaças. Em alguns casos, o silêncio será violentamente decretado pela eternidade, ou, para não usar de tanta abstração, por toda fugaz e efêmera vida terrena, com a morte da pessoa vítima de abuso.
Silêncio, você não pode falar, você deve calar. Silêncio, não queremos ouvir você, não estrague as nossas boas vibrações com sua estória. Silêncio, não foi nada, o tempo cura tudo, há coisas muito piores acontecendo o tempo todo. Silêncio, você está estragando o domingo da família com esse assunto. Silêncio, a polícia não pode fazer nada, você estava no lugar errado, ou com as roupas erradas, ou no horário errado, ou tudo isso junto. Você apenas existe e concorreu para o que te aconteceu. Silêncio, o seu depoimento não interessa para a Justiça, não há provas contundentes contra o abusador. Contundente só o nosso modo também abusivo de ouvir e lhe expor, seu depoimento não será sem danos. Silêncio, ao Estado não interessa o seu caso, só interessa o sucateamento de toda a rede de proteção, deixando você ainda mais invisível e sem voz. Silêncio!
Neste 18 de maio de 2021, resolvemos falar sobre Severina Maria da Silva, agricultora, pernambucana, que, em 2005, resolveu intervir em sua história de sofrimento. Aos 9 anos de idade, Severina passou a ser abusada pelo pai, com o consentimento e participação direta da mãe:
Aos nove, fui com meu pai para o roçado. No caminho, ele me levou para o mato, amarrou minha boca com a camisa e tentou ser dono de mim. Eu dei uma pezada no nariz dele, e ele puxou uma faca para me sangrar. A faca pegou no meu pescoço e no joelho. Depois, ele tentou de novo, mas não conseguiu ser dono de mim. Em casa, contei para minha mãe e ela me deu uma pisa. Fiquei sem almoço. À noite, minha mãe foi me buscar e me levou para ele, que me abusou. No outro dia, fui andar e não consegui. Falei: "Mãe, isso é um pecado". E ela: "Não é pecado. Filha tem que ser mulher do pai." (Depoimento de Severina à Folha de São Paulo, 2011)
A dor de viver sem voz se entrelaça com a própria dor dos abusos sofridos. Após o episódio, o pai manteve as práticas de abuso e Severina chegou a engravidar dele 12 vezes, onde apenas 5 de seus filhos sobreviveram, num quadro de violência que perdurou por 29 anos. Tentou, nas suas palavras, “procurar seus direitos”, mas não obteve sucesso. Ou seja, não foi devidamente ouvida. O que chama a atenção é a noção da criança abusada de que aquilo era “um pecado”, nos dizeres de Severina aos 9 anos de idade, em unidade familiar simples, no sertão isolado de Pernambuco. É possível enxergar um símbolo discursivo da violência sofrida a partir da formação religiosa.
De um lado, verifica-se a constante invalidação do discurso da vítima. De outro, a insistente tentativa de validação do discurso do abusador. Tamanha era sua dor que Severina já havia tentado suicídio diversas vezes, chegando a colocar uma corda em seu pescoço. Em 2005, quando a filha de Severina completou 11 anos, seu pai tentou novamente validar o discurso de abuso, com ameaças e chamando seu intento de “acordo”. Severina ainda era abusada e agredida pelo pai e quando ele tentou infringir a mesma violência sexual contra a filha de 11 anos, Severina se opôs. Ela foi espancada por três dias seguidos, ameaçada de morte caso não consentisse com o abuso.
Foi nesse contexto que ela decidiu fazer justiça com as próprias mãos: um contexto de anulação de suas palavras e de sua vida, de impotência, de total descrédito do Estado, personificado na pessoa do Delegado por ela mencionado, em quem buscou ajuda. Nesse momento, ela decidiu pagar para que matassem o pai e pusessem fim ao ciclo de violência.
Severina foi presa e passou pelo plenário do Júri em 25 de agosto de 2011, absolvida por unanimidade. Ainda em depoimento fornecido à Folha de São Paulo, Severina afirmou que, cerca de 15 anos antes do julgamento de seu crime, havia procurado a polícia com um pedido de socorro para a violência a qual era submetida há tanto tempo. Na ocasião, o Delegado ordenou que ela retornasse para casa com seu pai, o qual foi referido como um “velhinho”, esquecesse o assunto.
A falta de qualquer ajuda ou proteção por parte do poder público não deixou escolha para Severina. Ela deu voz ao seu sofrimento e rompeu o ciclo a partir dos elementos possíveis em vez de romper o ciclo acabando com sua própria vida, o que talvez colocasse sua filha na mesma longa e terrível situação vivida por ela. Mas qual teria sido o desfecho do caso se as autoridades tivessem se mobilizado? Teriam um aparato estatal eficaz? Teriam conseguido salvar Severina, sem que seu pai a tivesse matado antes? São questionamentos assim que nos fazem olhar para a rede de proteção disponível na atualidade. É necessário pensar em esforços constantes para aprimoramento e efetividade das medidas a serem tomadas em casos análogos, sobretudo para prevenção.
Como ressaltado acima, fica evidente o descaso do Estado do começo ao fim do que ocorreu na vida de Severina. Constata-se uma grave falta de políticas públicas, tanto para combate quanto para prevenção de abuso sexual contra crianças e adolescentes. Observa-se igualmente uma preocupante ausência de educação e conscientização sobre o tema. A polícia e o judiciário ainda são despreparados no acolhimento digno, diligente e eficaz das vítimas. Em suma, vítimas de abuso sexual muitas vezes se veem presas e atadas, sem qualquer perspectiva de sair da situação abusiva, denunciar e ser ouvida, ter a saúde física e mental devidamente resguardadas.
A estória de Severina está presente na História da humanidade, em muitas culturas, com uma naturalização do abuso sexual infantil, inclusive por membros da família. Entretanto, em sua estória, muitos pontos podem ser ressaltados como: a ausência de voz do abusado; o descaso do Estado e a falta de políticas para atendimento e combate à violência sexual contra crianças e adolescentes; a ineficiência em termos de uma educação capaz de libertar e quebrar costumes e práticas ofensivas aos direitos humanos, dentre tantas outras questões.
É válido recordar que o o combate às violências sexuais de crianças e adolescentes já tem sua presença formal no contexto brasileiro. Há exatos 48 anos, o 18 de maio ganhava uma dimensão de luta pela vida das crianças e adolescentes que sofrem com o abuso sexual no Brasil a partir da morte da menina Araceli, relembrada em 2020 por nossa companheira Beatriz de Barros no texto Carta para Araceli. Na atualidade, Araceli e Severina nos apontam para uma questão que não se trata de um debate simplório, mas determina como meninas, meninos e jovens podem sobreviver.
Entre os dados de 2020, o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos indicou que o Disque 100 recebeu cerca de 95 mil denúncias de violência contra crianças e adolescentes, caracterizadas como violências física e psicológica, estupro, exploração e abuso sexual. Todavia, um elemento a ser considerado é o alto nível de subnotificações, com a denúncia formalizada de situações de abuso e violência contra crianças e adolescentes não alcançando 10% do número real.
Existe uma multiplicidade de dados que devem ser olhados para uma análise completa da situação, todavia alguns aspectos são repetidos em diferentes pesquisas. Destacamos o caráter crônico e constante da violência sexual, assim como a ocorrência no espaço privado por indivíduos que possuem algum nível de proximidade com a vítima. Simultaneamente, o estupro é reconhecido com uma das formas de violência com maior ocorrência, principalmente em crianças e adolescentes do sexo feminino, no espaço da residência.
Quando observamos a questão da exploração sexual de menores, encontramos dimensões profundas de violência. De acordo com um estudo produzido entre a organização Childhood Brasil e a Polícia Rodoviária Federal, no biênio 2017/2018 existiam 2.487 pontos vulneráveis para a exploração sexual de crianças e adolescentes nas rodovias federais. Ao observarmos os dados relativos ao biênio 2019/2020, encontramos o aumento desse número para 3.651 pontos de vulnerabilidade, com maior ocorrência em postos de gasolina, assim como em áreas da rodovia mais urbanizadas.
De acordo com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o Brasil atinge a marca de 4 meninas menores de 13 anos estupradas por hora. Vale ressaltar que essa informação se refere ao ano de 2018, em um momento pré-pandemia. Ao interseccionar os dados de que a residência é o local com uma incidência alta dos abusos sexuais para crianças e adolescentes, encontramos um terreno fértil para o aumento da violência e da fragilização desse grupo, com diminuição do contato social e maior convívio com os agressores.
Em um sentido jurídico, o artigo 227 da Constituição Federal destaca que a família, a sociedade e do Estado têm o dever de garantir proteção à criança, ao adolescente e ao jovem, com prioridade absoluta, de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, além de todos os direitos fundamentais contidos na CF/88. É preciso pensar sobre tornar o texto desse artigo efetivo, com prioridade, em um esforço social coletivo.
Os dados e indicativos supracitados demonstram o caráter urgenteda questão. De forma sistematizada, sociedade e o Estado devem voltar a atenção e os esforços para prevenção e combate ao abuso sexual de crianças e adolescentes. Quantas Severinas são abusadas e silenciadas enquanto se escreve esse texto? Qual é a inserção substancial da campanha governamental do “Maio Laranja”, pela Secretaria Nacional dos Direitos de Crianças e Adolescentes?
Ao considerar que as formas de aprendizagem, o acesso ao ensino público, a garantia de espaços de saúde determinam as condições de existência na infância e juventude, é possível falar em um enfrentamento real dos abusos e violências sofridos por meninos e meninas em um país que aprova uma Emenda Constitucional que congela gastos ligados à educação e saúde por vinte anos?
Além das provocações colocadas, não podemos esquecer do episódio estapafúrdio protagonizado pela ministra da Mulher, Família e dos Direitos Humanos para a continuidade da gravidez de uma menina de dez anos estuprada pelo tio no Espírito Santo. Em setembro de 2020, o jornal da Folha de São Paulo divulgou a tentativa feita pela ministra Damares Alves nos bastidores para que o aborto não ocorresse, com exposição da criança, que foi atingida por manifestações da extrema-direita, intensificando o nível das violações sofridas.
Inevitavelmente, a questão do combate à violência sexual contra crianças e adolescentes perpassa pelo debate econômico e pelos contornos neoliberais assumidos pelas sociedades atuais, em especial a brasileira, com a precarização dos investimentos em políticas públicas capazes de garantir o acolhimento, tratamento e proteção da infância e juventude.
Esse contexto é somado aos retrocessos sociais e o avanço de posturas fundamentalistas, onde os discursos pelo combate ao abuso sexual de crianças e adolescentes podem ser resumidos como verborragia barata. A tendência, nesse observado cenário de diminuição da atuação do Estado, é que mais Severinas e mais Aracelis marquem a história com suas estórias de sofrimento e descaso, em um ciclo de desumanização e de redução de vidas a corpos descartáveis.
Ana Carolina Garcia, 32, é mestranda no Programa de Pós-Graduação em Direito da UNESP - Franca, graduada em Direito pela UNESP - Franca, membro do Instituto Humanidade, Direitos e Democracia - IHUDD, Funcionária Pública do estado de São Paulo.
Diego Alex Toloto, 34, é pós-graduando em Economia do Trabalho e Sindicalismo pelo CESIT - UNICAMP, pesquisador do Grupo de Pesquisa Trabalho e Capital - GPTC/USP, graduado em Direito pela UNESP - Franca, advogado.
Duda Sansão, 24, é mestranda no Programa de Pós-Graduação em Direito pela UNESP, graduada em Direito pela Universidade do Estado de Minas Gerais, membro do Instituto Humanidade, Direitos e Democracia - IHUDD, pesquisa temas ligados à questão de gênero, segurança alimentar e nutricional, direitos sociais.