Ilustração por Danielly Omm
Nem dez anos tinhas quando te sequestraram na porta da escola. Nem dez anos quando te drogaram, estupraram coletivamente teu pequeno corpo e o deixaram “irreconhecível” atrás de um hospital. Mesmo com exames confirmando que aqueles eram mesmo teus restos mortais, infelizmente, até hoje, os nomes de dois dos teus algozes ainda batizam a principal avenida - Dante Michelini (pai e filho) - desta capital do “Espírito Santo”.
Quarenta e sete anos e três meses mais tarde, querida, você revive. Não da maneira como gostaríamos nós que aguardamos ainda por justiça, mas pelas semelhanças do teu caso com as violações sofridas por outra menina, cujo nome gostaria de preservar nessa carta, embora eu creia que você, infelizmente, já tenha ouvido por aí. Essa menina tinha apenas seis quando começou a ser abusada no seio familiar. Aos dez engravidou de seus algozes, que eram aqueles que a deveriam proteger, mas a ameaçavam de morte. Descobrimos há poucos dias, e ficamos estarrecidos com o fato, como você também deve ter ficado.
“Que bom que descobriram a tempo”, você deve estar pensando, pois sabe que, caso ela não tivesse tido o diagnóstico correto, tinha tudo para entrar na estatística pela qual mais de vinte e cinco mil meninas (de até 14 anos) são “mães” no Brasil todos os anos. Nosso país conta, ainda, com a triste marca de ser o quarto país com mais casamentos infantis no mundo, e você deve ficar mais feliz ainda em saber que esse não será, ao menos por enquanto, o destino dela: ninguém a obrigará a casar com seu estuprador para manter uma aparência bizarra de “tradicional família brasileira”.
Em que pese todas essas “sortes”, no entanto, essa menina foi, assim como você, vítima de estupros coletivos - não apenas fisicamente. A mesma incapacidade que a “justiça” teve para garantir a punição para teus algozes durante todos esses anos, ela teve ao não proteger o direito à infância dessa criança, que teve que fugir do Estado para não ser "mãe" por um estupro. Por fim, foi chamada de “assassina” no local onde teria restaurada sua dignidade. "Assassina", você imagina? Logo ela que, como você, foi capaz de suportar tanto com tão pouco, teria de aguentar “mais um pouco” para poder “dar à luz” a um ser cujo futuro poderia muito bem ser o teu, só para satisfazer a sede por “justiça divina” de certos demônios.
Então, é isso, querida. As pessoas continuam mais preocupadas com a vida de fetos do que com o bem-estar (físico e mental) de crianças já nascidas. Pessoas brancas e ricas seguem longe de qualquer sombra de punição efetiva, enquanto algozes racializados e empobrecidos são pintados como “exceção monstruosa” a algo que, cá entre nós, é bem a regra nesse país… E um direito que já existia quando você ainda era viva está hoje à beira de ser riscado do mapa no Brasil. Nesse Brasil, aliás, cuja constituição diz que a proteção à “infância” deve ser “prioridade absoluta”, a tua história - e a dessa menina, praticamente da sua idade - escancaram, enfim, a hipocrisia.
Mas descanse em paz aí, que seguimos na luta por justiça aqui, viu?
Da tua amiga,
Beatriz
Beatriz de Barros Souza, 31, é Mestra em Direitos Humanos pela USP, Bacharela em Relações Internacionais pela PUC-SP e atualmente faz Doutorado em Psicologia na UFES, com bolsa do CNPq.