(Os Retirantes -- Portinari)
A conduta da autuada é de acentuada reprovabilidade, eis que estava a praticar o crime patrimonial. Mesmo levando-se em conta os efeitos da crise sanitária, a medida é a mais adequada para garantir a ordem pública, porquanto, em liberdade, a indiciada a coloca em risco, agravando o quadro de instabilidade que há no país. O momento impõe maior rigor na custódia cautelar, pois a população está fragilizada no interior de suas residências, devendo ser protegidas pelos poderes públicos e pelo Poder Judiciário contra aqueles que, ao invés de se recolherem, vão às ruas com a finalidade única de delinquir.
A decisão ilegal e política se insurge contra a ordem constitucional brasileira e, vale ressaltar, contra decisão do STF, em tal afronta a autoridade da corte que faria inveja a Sara Giromini e seus “trezentos”, ao Sérgio Reis ou Zé Trovão. Juridicamente falando, a fundamentação da decisão é baseada em um conceito de singular vagueza: “garantia da ordem pública”. Os conceitos vagos assim o são para que possam recepcionar, com luxuosa cortesia, um exigente tipo de hóspede: o despotismo judicial, essencialmente ideológico e classista... Esta “ordem pública” pública, defendida pela juíza, não é fundada na legalidade, mas no estado de exceção. Não posso tirar a razão do Marquês de Condorcet: o despotismo dos tribunais é o mais odioso de todos, porque emprega, para ser exercido e sustentado, a arma mais respeitável: a lei (CONDORCET, 2013, p. 35).
Algo de teologia-política nesta decisão, justamente quando a magistrada diz: em liberdade, a indiciada a coloca em risco, agravando o quadro de instabilidade que há no país. É fenomenal, pois aqui está a fundamentação da prisão do presidente, de seus filhos, sua base legislativa em especial, Paulo Guedes. Todos que estão agravando “o quadro de instabilidade do país”, mas veja, milagre da fé, a mãe de cinco filhos está presa no lugar que deveria ser do pai de cinco filhos que guia o país rumo ao inferno. Mas qual o deus desta teologia-política?
O dinheiro é o deus zeloso de Israel, diante do qual não pode subsistir nenhum outro. O dinheiro humilha todos os deuses do homem e os transforma em mercadoria. O dinheiro é o valor universal de todas as coisas, constituído em função de si mesmo. Em consequência, ele despojou o mundo inteiro, tanto o mundo humano quanto a natureza, de seu valor singular e próprio. O dinheiro é a essência do trabalho e da existência humanos, alienada do homem; essa essência estranha a ele o domina e ele a cultua (MARX, 2010, p. 58).
A mãe de cinco filhos foi imolada no altar da ordem pública bolsonarista por ousar preferir miojo e coca em vez de comer osso; imolada no inferno do sistema carcerário para garantir aos dólares de Paulo Guedes e Campos Neto um lugar no paraíso. Amém!
Mas voltemos ao caso e leiamos as palavras do promotor: Consta, ainda, que o preso é reincidente específica, de modo que a sua custódia se faz necessária para a garantia da ordem pública e evitar a reiteração delitiva (art. 313, II, CPP). Pontua-se que a reincidência é causa impeditiva para a liberdade provisória nos termos do artigo 310, § 2º, do CPP (Lei 13.964/2019). O que dizer da reincidência num caso de estado de necessidade causado pela fome? Respondo com uma pergunta médica: a fome é um quadro físico que só acontece uma vez na vida do ser humano, como a catapora, criando-se imunidade permanente? É certo que não! O absurdo da pergunta busca igualar na forma o absurdo da argumentação.
Não espero que tal promotor leia a boa literatura jurídica, mas se lesse poesia, talvez tivesse se deparado comum verso de Brecht que muito útil lhe seria.
Como um mendigo que bate pela quinta vez numa porta onde já recebeu algo quatro vezes: pela quinta tem fome.
Mas ela “fez do crime seu meio de vida”. Em 2014 e 2018 teria furtado, também, então, para facilitar o entendimento lírico do promotor, já que não tenho a expectativa que ele possa vir a ter algum conhecimento em direito, transcrevo os versos do poeta alemão, sem a expectativa que o verso seguinte seja rico em lirismo ou preciso em sua realidade:
Mas a juíza faz uso retórico da pandemia e da crise em que vivemos para afirmar que é necessário maior rigor, A juíza sabe, que são tempos de fome, e que a acusada vai sentir fome de novo, e vai ver seus cinco filhos sentindo fome também. E a magistrada sabe que os famintos que buscam ossos talvez fiquem com os ossos cansados de tantos respeitar as leis e o sagrado patrimônio. É preciso fazer algo muito duro contra esta situação, então, a juíza fez o milagre da consubstanciação da carne dos carniceiros do governo na carne dessa mãe, que deverá carregar todos os crimes de uma corja criminosa que está no poder. É um milagre, e como dizia Carl Schmitt, o poder soberano demonstrado no estado de exceção é como um milagre, que se sobrepõe ao normal.
600.000 mortos. Continuo o supracitado poema brechtiano:
[...] Centenas foram mortos então. Mas quando milhares foram mortos e a matança era sem fim, o silêncio tomou conta de tudo.
Quando o crime acontece como a chuva que cai, ninguém mais grita “alto”.
Quando as maldades se multiplicam, tornam-se invisíveis.
Quando os sofrimentos se tornam insuportáveis, não se ouvem mais os gritos.
Também os gritos caem como a chuva de verão.
ALTO! ALTO! ALTO! Estão prendendo os famintos!
P.S.: O princípio da insignificância foi reconhecido pelo STJ, que determinou a soltura da mulher e o trancamento do inquérito. Tal decisão, tecnicamente correta, deveria ter sido tomada imediatamente pelo TJ-SP.
REFERÊNCIAS:
BRECHT, Bertolt. Poemas: 1913-1956. São Paulo: Ed. 34, 2000.
CONDORCET. Escritos Políticos-constitucionais. Campinas: Editora da Unicamp, 2013.
MARX, Karl. Sobre a questão judaica. São Paulo: Boitempo, 2010.
James Hermínio Porto é servidor público, mestre em direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, onde também se graduou. É membro do IHUDD, o Instituto Humanidade, Direitos e Democracia.