O incrível caso das milícias “cariocas”

(Por Eudes Cardozo)

Eudes Cardozo


 

(Imagem: André Toma/UOL)
“Eufemismo, os felizes tempos, eufemismo apenas, igual aos outros que nos alimentam, a saudade dos dias que correram como melhores. Bem considerando, a atualidade é a mesma em todas as datas.” 
(Raul Pompeia, O Ateneu)

 

Na altura do município de Três Marias, Minas Gerais, existe um rio chamado “Rio de Janeiro”, retratado na obra clássica de Guimarães Rosa, um afluente do rio São Francisco onde a desventura do jagunço Riobaldo se inicia. Porém, tanto no Grande Sertão quanto nas veredas, também na lida cotidiana da vida, os que se referem ao rio, dizem apenas “De Janeiro”. E assim, o rio que tem de fato o nome de Rio de Janeiro, acaba sendo apenas “De Janeiro”.

Por outro lado, não há nenhum rio chamado “Rio de Janeiro” cortando a capital do Estado do Rio de Janeiro. Há controvérsias, mas ao que tudo indica, por um equívoco no primeiro contato dos portugueses com as águas do litoral fluminense, um deslize de percepção hidrográfica converteu a baía da Guanabara em rio. O engano foi num mês de janeiro, e por isto: Rio de Janeiro. O nome do município, no entanto, por contas do império e de um santo mártir é na verdade São Sebastião do Rio de Janeiro, não que alguém assim ainda o diga – que em nosso país não costumamos chamar as coisas por seus nomes – pois a força do hábito, o desuso do nome completo e correto fez com que a alcunha tenha se tornado a norma. E chamamos apenas por Rio de Janeiro ao São Sebastião fundado em um primeiro de março. Por vezes, numa corrupção ainda maior (e maior por ser menor), reduzimos toda a superlativa rede de relações e interações que a capital fluminense carrega a meramente “Rio”, esvaziando todo o significado que a palavra rio transporta e comporta. Desta forma, o Rio que não é rio, se torna a norma.

Já o bairro Rio das Pedras – com toda sua peculiaridade – situado na zona oeste do Rio de Janeiro, só existe no Rio de Janeiro. Bem que por lá, dizem também ser Jacarepaguá. Bom, o que não vem ao caso. E o redator destas linhas, habituado a dizer bolacha para todo biscoito está bem longe de ser um perito sobre o tema. Como em todo bairro de toda grande cidade do país, há policiais que patrulham as ruas do bairro Rio das Pedras, bem como há policiais que residem nas ruas de Rio das Pedras. A criminalidade de Rio das Pedras foi combatida de uma nova forma, algo de fato novo, e só existente (em sua atual forma) em Rio das Pedras.

No Rio de Janeiro, como em toda parte do país, há policiais corruptos. Aqueles que fogem as suas funções e enveredam pelas escuras e estreitas travessas do submundo. Ao desvio, à curva do rio das forças de segurança pública, desvio comum e corriqueiro em toda parte do país, convencionou-se nomear “exceção da regra”. A exceção da regra, em cada região de nosso continental país possuí características distintas, inerentes as distintas características da região onde ocorre, notem: o curioso do caso é que mesmo sendo de ocorrência nacional o fenômeno exceção da regra, permanece sendo chamado exceção, e tratar como exceção o comum, tornou-se a regra.

A regra mudou um tanto em Rio das Pedras no Rio de Janeiro, o desvio de conduta do agente das forças de segurança pública não foi só normalizado, foi anexado e incorporado ao modus cotidiano. Um policial desviante, um agente de segurança corrompido passou a ser normalizado, aceito e naturalizado. No caso de Rio das Pedras, agrupamentos de policiais corruptos se apropriaram das atividades ilícitas que preconizam por ofício combater. Há os que insistam que este é um fenômeno legitimamente carioca, endêmico do Rio e de Rio das Pedras.

O que parece escapar aos que propõe tal devaneio é bastante simples, de ordem prática e de fácil verificação. Há um primeiro desvio, uma exceção da regra original, da qual decorrem todas as outras. A única possibilidade de que um policial desviante siga seu decurso é a cumplicidade de seus pares e superiores. Sendo a função do agente de segurança pública – dentre outras – o combate ao crime, não se deve por critério objetivo de sua função acobertar ou corroborar com os crimes cometidos por outro agente de segurança pública, não há que se estabelecer distinção entre o crime cometido devido a função desempenhada por seu autor. Parece simples, mas a teoria – ainda que tente – não define nunca a prática. A prevaricação, o ato de deixar de cumprir seus deveres para com a sociedade para a cumplicidade com seus iguais é marca indelével nas forças de segurança pública em todo o país. À tal prática, ao ato de acobertar o companheiro de farda, ao ato de não delatar o colega de batalhão, quartel, delegacia; atribuímos o termo: Corporativismo. E ao dizê-lo, parece que estamos de fato dizendo outra coisa que não a coisa em si. E quase mais ninguém neste vasto e continental país pensa em crime ao dizer: corporativismo.

Havendo a nacionalização do fenômeno corriqueiro denominado “exceção da regra”, houve primeiro a adoção da prática corporativista como modus operandi do agir policial. Não haveria o primeiro sem o último, não deixará de haver nunca a corrupção policial, sem a corrupção inicial que cinicamente, enquanto sociedade, nos damos ao luxo de chamar corporativismo. Os policiais corruptos permanecem corruptos, pois os policiais “não corruptos” não os denunciam.

Os policiais corruptos de Rio das Pedras acobertados pelos policiais “não corruptos” de Rio das Pedras passaram a ser chamados de milicianos. Diferente de outras partes do país onde policiais civis e militares também são cooptados para a prática ou o conluio com o ilícito, no Rio de Janeiro, em Rio das Pedras, os policiais assumiram o controle das operações criminosas que antes apenas acobertavam. A estes criminosos costumamos dispensar o tratamento de “milicianos”.

O tráfico de drogas, a concessão de sinal clandestino de internet e TV a cabo, os serviços alternativos de transporte, a venda de botijões de gás, a venda e locação de imóveis e terrenos, o voto dos moradores, a gestão da sociedade amigos do bairro e uma ampla rede de negócios escusos e irregulares que antes eram administrados por criminosos e contraventores hoje é conduzida por policiais criminosos, mas notem que não os chamamos pelo que são. O modelo de Rio das Pedras se espalhou pela baixada fluminense, São Gonçalo e Niterói. O que diferencia o método de atuação das milícias cariocas dos demais policiais desviantes no resto do país é o fato do ilícito ser explicito, escancarado e não mais negado. Isso quer dizer que agrupamentos de policiais desviantes acobertados por seus pares com uma ampla rede de relações que se estende até à administração pública é uma exclusividade do Rio?

Ora, retrocedendo não muito tempo, no mesmo espaço e Estado podemos observar um traço similar em outro grupo: a Scuderie Detetive Le Cocq. Em 1965, um grupo de policiais se organiza em torno da vingança ao assassinato do investigador de polícia Milton Le Coqc. O fato que até hoje levanta menos discussões e revolta é o da circunstância da morte do agente da lei. Milton, o policial a ser vingado por seus pares, foi assassinado enquanto fazia a segurança de um bicheiro, não morreu prestando honrosos serviços à sociedade, morreu ao serviço de um contraventor.

Cara de Cavalo, o criminoso e assassino de Le Coqc, eternizado na obra de Oiticica realizava o mesmo “serviço” que hoje os milicianos e muitos policiais “honestos” realizam: cobrar uma taxa para “permitir” a operação do jogo do bicho em determinadas áreas da capital fluminense. Cara de Cavalo livrava um qualquer livrando os bicheiros de incertas da polícia e do assédio de outros criminosos. Um dos bicheiros ousou empreender. Invariavelmente, além da anistia concedida ao criminoso, também policiais solicitavam propina, o bicheiro fez as contas e apostou alto. Contratou Le Cocq para sua segurança pessoal e a continuidade de seus negócios. Não é necessário apontar para o absurdo da questão, mas façamos este esforço: o jogo do bicho, considerado um jogo de azar, é proibido por lei, não sendo permitido em todo o território nacional. Os bicheiros ao arrepio da lei montam suas barracas (bancas), as pessoas (nós) compreendendo a ilegalidade realizam suas apostas, um criminoso em nome de uma suposta segurança e garantia da manutenção da banca do bicho passa a tarifar a operação; um agente da lei em concorrência franca com o criminoso arma uma emboscada para eliminar o rival; o policial morre. O jogo do bicho presente em todos os bairros da capital paulista bem como em todos os rincões do país é o maior exemplo do quão subjetiva e relativa é a interpretação de crime cá conosco. Em alguns casos, e não apenas o do Rio de Janeiro, policiais se apoderaram da própria operação do bicho e mercado de apostas. Dois mil policiais das então forças de segurança pública ao período se mobilizaram na caçada a Cara de Cavalo. Não era estranho a nenhum destes a natureza escusa das relações de Le Coqc e os contraventores do bicho, a relação iniciada em Le Coqc, aliás, marcaria o início da longeva cooperação entre bicheiros e policiais no Estado Rio de Janeiro. A mídia, os políticos, nós todos costumamos dizer que o policial que “trabalha” para um bicheiro fora (e muitas vezes dentro) de seu expediente é um segurança. Deveríamos? Eles deveriam? E seguimos, dando outro nome ao inominável.

Há mais um dado curioso sobre a Scuderie, um grupo de extermínio que optamos por não chamar pelo que é e que chegou a gozar do status de instituição legal. Não foi no Rio de Janeiro que a face criminosa do grupo foi exposta. No Estado do Espírito Santo, na década de 80, a filial da famigerada associação de policiais se articulou como poucas vezes se tem notícia no país. Empresários, comerciantes, e os já sabidos policiais passaram a disputar cargos públicos. A expansão e penetração da associação na administração pública viria a ser conhecida apenas em 1995 após denúncia ao Ministério Público, mas sendo extinta apenas em 2005 com o saldo de 1.500 mortos em todo o Espírito Santo. Nas tramas da instituição, oficial no caso capixaba, a participação de jornalistas, magistrados, promotores e membros do ministério público dificultou as investigações e responsabilização dos envolvidos. Entre os crimes atribuídos aos justiceiros, havia o extermínio de menores em situação de rua e a explosão de veículos para eliminar contraventores rivais. O caso dos Escudeiros capixabas serve apenas de demonstrativo para como não lidamos com um fenômeno novo no caso das milícias de Rio das Pedras. É o velho, o comum e corriqueiro banalizado e incorporado ao cotidiano. A dissolução do grupo capixaba não desarticulou de fato os desvios cometidos pelo grupo. Ainda que os tenha coibido temporariamente.

E no Brasil de tantos eufemismos, acostumado a não tratar com seriedade suas mazelas e querelas, mais uma vez e uma vez mais o ilícito tomado por prática, volta a nos assombrar. As relações da família presidencial com o crime organizado dos policiais advêm daí, de nossa ancestral mitigação, de nosso descaso e descuido. De nosso hábito enquanto sociedade em elencar abrandamentos para o trato com o real. E como demonstrativo cabal de que alcunhas não atenuam e nem abrandam a dureza da vida, no dia dezenove de janeiro de 2019, o notório membro do grupo de extermínio capixaba, Carlos Humberto Mannato foi nomeado Secretário Especial para a Câmara dos Deputados da Casa Civil da Presidência da República. Ao elo informal entre todos os criminosos mencionados, alguns darão o nome de apadrinhamento; conluio; biopoder; necropolítica, mas sabemos desde muito que tais pecados são vícios inerentes da sociabilidade burguesa, são males capitais do capital, ainda que não os tratemos pelo que são. E como de costume, ao não darmos aos bois os seus nomes cabíveis e devidos, o absurdo se faz verbo em nosso cotidiano e o descabido se fez governo.

 

Eudes Cardozo é professor de História, militante Comunista e pai do Pablo e do Arthur 


REFERÊNCIAS

HÉLIO Oiticica. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras. São Paulo: Itaú Cultural, 2020. Disponível em: <http://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa48/helio-oiticica>. Acesso em: 21 de Mai. 2020. Verbete da Enciclopédia. ISBN: 978-85-7979-060-7

POMPÉIA, Raul. O Ateneu. 16ª ed., São Paulo: Ática, 1996 (Bom Livro).

Notícias de uma Guerra Particular. Dir. Kátia Lund / João Moreira Salles. Videofilmes. 1999, Brasil.