O Elo Perdido: sobre o (Des)envolvimento humano

Por Douglas Meira e Danielly Omm

Douglas Meira Ferreira

“Se existe uma ânsia por consumir a natureza, existe também uma por consumir subjetividades — as nossas subjetividades. Então vamos vivê-las com a liberdade que formos capazes de inventar, não botar ela no mercado. Já que a natureza está sendo assaltada de uma maneira tão indefensável, vamos, pelo menos, ser capazes de manter nossas subjetividades, nossas visões, nossas poéticas sobre a existência.” (Krenak, 2019)

Desde a segunda metade do século XIX, grupos de pesquisadores das ciências biológicas e humanas têm buscado respostas sobre as origens da nossa espécie. Hoje, depois de muitas escavações de fósseis e debates, a ciência nos conta que somos do reino animália, da classe mammalia, integrando a ordem dos primatas, da família dos hominídeos. O gênero é Homo e a espécie -- Homo Sapiens (Humano Sábio). O percurso evolutivo traçado, segundo as constatações de Darwin, é tomado por inúmeras dúvidas, mutações e não linearidades. Esse caminho de dois ou três bilhões de anos percorrido pela complexificação da vida ainda está em curso e, diferente do que gostaríamos, não somos protagonistas e muito menos “senhores” deste processo.

Entendemos, até certo ponto, que somos filhos dos primatas e que, em algum momento da história, tomamos o rumo divergente. Saindo do denso ambiente tropical das florestas para ganhar o campo aberto da Savana. Nessa singularidade que é tão importante para nós como a sopa primordial da vida, pensamos ter nos separado da organicidade natural da terra para desenvolver um mundo diferente, o “autônomo” reino da cultura.

Nesse específico ponto da história, dos hominídeos continuamos incessantemente buscando o “elo perdido” que divide humanos dos nossos primos primatas. Essa bifurcação do caminho evolutivo entre humanos e chimpanzés ainda tem profundos impactos em nossa concepção de civilização. É um enigma onde o campo da arqueologia se junta com a paleontologia. Estima-se que esse ancestral comum tenha caminhado na superfície do território africano central cerca de seis ou sete milhões de anos atrás. Descobertas na área mostraram ao menos uma dúzia de hominídeos que convergem características dos Australopitechus (macacos do Sul) com os pan-hominídeos (chimpanzés e bonobos).

Há cerca de 2,5 milhões de anos, uma ramificação dos australopithecus deu origem ao gênero Homo. Essa transformação aconteceu na África, muito provavelmente na região conhecida como Etiópia. Segundo o que Dinknesh[1] contou aos paleoantropólogos, foi nessa época que os australopithecus começaram a caminhar sobre duas pernas, imensa vantagem para identificar predadores à distância e um ganho energético para deslocamentos.

Apesar de Dinknesh demonstrar claros sinais de bipedismo, seu cérebro media cerca de 500 cm³ e ainda se assemelhava muito ao de um chimpanzé. Com o passar do tempo, o processo evolutivo de aumento do tamanho do cérebro derivou um agrupamento primata diferente que demonstrava outras habilidades cognitivas e corpos maiores. Locomovendo-se sobre duas pernas e distante das árvores, esse movimento ficou marcado como início dos Homo. O cérebro de um indivíduo Homo variou enormemente: ossadas que datam até dois milhões de anos mostram que o crânio de nossos irmãos antepassados foi de 600 cm³ até os 1600 cm³. No caso da espécie Homo Neanderthalensis, a capacidade craniana chegou a ser inclusive superior ao crânio dos leitores deste texto.

No período inicial dos Homo, concomitante à expansão cerebral, diferentes vertentes Homo surgiram. Começando assim também uma ampliação no território habitado, saíram da África central e aventuraram-se pelas terras da África do norte e da Eurasia. No meio desse caldeirão de diferentes primatas bípedes, há cerca de 200-150 mil anos surgiu uma nova espécie, o Homo Sapiens.

Dotados de cérebros grandes e com capacidades sociais diferenciadas, a nova espécie à qual pertencemos causou grandes impactos. Em pouco tempo, desapareceram todas as outras variáveis de humanos até então existentes. Os agrupamentos de Homo Erectus, por exemplo, que habitaram a Ásia ao longo de 1,5 milhão de anos deixaram de existir pouco após o surgimento desse “sábio” macaco na região. Estima-se que esse acontecimento se deu por duas vias, através do genocídio (guerras entre tribos) e/ou da competição (escassez de caça e alimento). Seja como for, o Sapiens prevaleceu. O legado deixado por parte dos outros tipos de humanos que conviveram com nossa espécie foi deixado nos genes, movimento que implica cruzamentos entre Denisovanos, Neandertais e Sapiens.

A expansão territorial do Homo Sapiens não tardou até conquistar o globo, com as Américas sendo provavelmente a última grande porção de terra alcançada. Antes mesmo do desenvolvimento das habilidades de agricultura que permitiram a vida sedentária dos agrupamentos, os impactos do Sapiens eram fortemente sentidos por outras espécies. Os outros tipos de Humanos foram os primeiros afetados, mas logo se iniciaria o chamado “Antropoceno”.

A chegada ao continente australiano data de 60-50 mil anos atrás. Com o isolamento dessa porção de terra do resto do continente Asiático, o processo evolutivo fez com que as espécies de mamíferos, répteis e aves que lá viviam se desenvolvessem de maneira diferente de outros continentes. Foi o caso do Diprodon, um mamífero quadrúpede que chegava a pesar 3 toneladas, e do Megalania, um lagarto de até 7 metros de comprimento que podia pesar até uma tonelada. O encontro entre espécies com o Sapiens se mostrou novamente negativo, sendo o resultado a extinção. Esse acontecimento representou o fim de da megafauna australiana, um habitat cheio de animais gigantes que levou milhões de anos para se constituir e foi remodelado em poucos milhares de anos.

O processo de extinção acompanhou o Sapiens em sua chegada ao mundo americano. Cerca de cem mil anos atrás, a terra passou por uma fase de resfriamento intenso. Esse processo natural do balanço atmosférico deste planeta acabou congelando grande parte dos oceanos, com uma baixa drástica de seus níveis. O período possibilitou viagens ao continente americano vindas da África, por via marítima, e posteriormente da Ásia/Oceania, por via terrestre e marítima. A hipótese de migração Africana foi formulada inicialmente por Niède Guidon por meio de descobertas no Parque Nacional da Serra da Capivara, com a confirmação a partir de recentes descobertas nas cavernas de Chiquihuite, no México. Os humanos devem ter atravessado navegando o oceano atlântico no período anterior ao do último máximo glacial. A travessia teria sido possível diretamente da África em uma época de extrema seca no continente que teria impulsionado navegações em busca de alimento.

Seja qual for a hipótese adotada, é certo que a chegada às américas foi arrasadora. No continente Americano, caminhavam inúmeras espécies moldadas por milhões de anos de evolução. Como o caso do Tigre dente-de-sabre (Smilodon Fatalis), felino carnívoro que chegou a pesar meia tonelada e ficou conhecido por suas presas em forma de sabres medindo até trinta centímetros; do Gliptodonte, uma espécie de tatu gigante que media cerca de três metros de comprimento e pesava mais de uma tonelada, além de quinze espécies de Mamutes que serviram como uma das principais fontes de alimento do Sapiens.

Conforme cresciam os povoamentos da região, a maioria dessas espécies de grande porte foi varrida do planeta. Esse processo de extinção se assemelha ao evento catastrófico que colocou um fim à era dos dinossauros (66 milhões de anos antes do presente). O impacto da chegada de nossa espécie em novos territórios (australiano e americano) é análogo ao de um asteroide de 10 km de diâmetro que se chocou com o planeta aniquilando grande parte das espécies de grandes animais vivos, encerrando uma era.

Intrigante é o fato de que até antes do início da expansão territorial do Sapiens, os seres humanos não representavam grandes riscos à diversidade de fauna e flora. Não passávamos de meros primatas bípedes que possuíam habilidades especiais. No entanto, foi o rápido avanço das capacidades de ordenamento social e de desenvolvimento técnico que transformou o inofensivo mamífero médio da pirâmide alimentar em um macaco expansivo, adaptável e perigoso.

A incapacidade da evolução natural de acompanhar o desenvolvimento cognitivo humano consolidou um cenário de império da espécie sem predadores à sua altura. O Homo Sapiens burlou os mecanismos naturais de balanço habitacional que antes regulavam sua posição na teia da vida. Em resposta ao vácuo evolutivo das outras espécies, sem predadores naturais ou presas com capacidades nas mesmas proporções, nos vimos destemidos e colocados na posição de superpredadores. Demos início à chacina, a era dos humanos, o Antropoceno. Hoje, somos apenas 0,01% da biomassa terrestre, mas ruidosos. Alteramos de tal forma a biosfera que 83% dos mamíferos selvagens foram extintos e 50% das espécies de plantas já desapareceram.

O elo perdido humano, fetiche dos antigos pesquisadores, persiste em nosso imaginário enquanto acreditarmos ter deixado de integrar o reino animal e, em consequência, os elos que nos unem às outras formas de vida. Esquecendo-se da enorme infinidade de relações que moldam o planeta, parece que a cultura nos fez querer ser, temporariamente, inorgânicos. Alienados dos entendimentos dos ciclos naturais que envolvem os metabolismos, perdemos o elo de nossa ligação com os outros seres vivos. Enganam-se aqueles que pensam que os processos interespécie estão separados dos intraespécie -- capitalismo, racismo, patriarcado, imperialismo e a exploração da natureza são somente diferentes espelhos em que podemos nos enxergar. A sustentabilidade, por consequência, só poderá ser almejada quando tais opressões forem superadas.

Em meio à aceleração da exploração dos humanos, plantas e outros animais pelo capitalismo contemporâneo, eis que a vida microbiótica revidou. Cutucando fundo nossa ferida narcísica, fez aquilo que a evolução natural da cadeia alimentar não foi capaz de fazer. O Coronavírus, provavelmente fruto de uma zoonose vinda de morcegos, é evidência de que um avanço desequilibrado e predatório promovido pelo Homo Sapiens povoando áreas repletas de animais silvestres tem profundas consequências. A nossa máquina sistêmica de produção de pandemias e devoradora de habitats arrefeceu por alguns instantes.

Os milhares de anos de devastação promovidos pela espécie são somente um piscar de olhos nos bilhões de anos da história orgânica. É hora de os humanos decretarem o fim do Antropoceno antes que o inverso seja feito. Se não enfrentarmos esses paradigmas para concretizar uma ecologia profunda, seremos em pouco tempo somente uma breve e pequena frase no livro da vida terrestre.

 

Referências:

Darwin, Charles. A Origem das Espécies. 1859.

Morin, Edgar. O Enigma do homem: para uma nova antropologia. Rio de Janeiro, Zahar, 1975.

Fritjof Capra. A teia da vida: Uma nova compreensão científica dos sistemas vivos. Editora Cultrix, 1996.

Harari, Yuval Noah. Sapiens – uma breve história da humanidade. L&PM, 2015.

Krenak, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. Companhia das Letras. 2019.

 


[1] O termo, em língua amárica, pode ser traduzido para “maravilhosa” em português. Esse indivíduo também foi denominado como Lucy, em homenagem à música dos beatles “Lucy in the sky with diamonds”. Trata-se de um Australopithecus afarensis encontrado nos anos 1974 que mudou profundamente o entendimento da nossa espécie sobre si mesma.