O caso Sara Winter: terrorismo e branquitude

(Por Beatriz de Barros Souza & Eudes Cardozo)

Beatriz Souza

(foto: Reuters)

O preto é o genital. Toda a história resume-se a isto? Infelizmente não. O preto é outra coisa. Aqui ainda reencontramos o judeu. O sexo nos separa, mas temos um ponto em comum: ambos representamos o Mal. O negro mais ainda, pela boa razão de ser negro. Na simbólica não se diz a Justiça Branca, a Verdade Branca, a Virgem Branca? ... O negro é o símbolo do Mal e o do Feio. Cotidianamente, o branco coloca em ação esta lógica.

(FANON, Pele negra máscaras brancas)



Nesta segunda (15), foi presa Sara Geromini, autointitulada “Sara Winter” em “homenagem” a um nazista qualquer. Desde sempre neonazista, começou a “pedir a atenção” da mídia ainda jovem, ao se alistar ao FEMEN que, a despeito da Wikipedia, não é feminista, tendo sido fundado e dirigido por um homem altamente misógino e na Ucrânia [1].

Embora não saibamos a duração da estada da extremista no cárcere, gostaríamos de aproveitar da ocasião para refletir sobre um fenômeno muito interessante que acomete boa parte da mídia atualmente: a recusa sistemática a chamar qualquer pessoa socialmente branca (ainda mais se for conservadora e simpatizante “da direita”) de “terrorista”. Até o momento, a neonazista mais fanática do Brasil já foi chamada pela grande mídia de ‘ex-feminista e atual militante radical’, “ativista” , “ativista de grupo de extrema direita”  etc.

Atos “terroristas” são, talvez, os “eventos midiáticos negativos” mais exemplares de que temos notícia na atualidade como bem aponta Hillel Nossek. Basta enunciá-los para que a população clame por “justiça” e “condenação” das pessoas identificadas como as “responsáveis” pelos ataques. Seria, portanto, perfeitamente compreensível se aguardassem pelos trâmites legais antes de se chamar alguém por esse nome - se fosse assim em todos os casos.

Com a rapidez com que Bolsonaro seguiu a Trump ao adjetivar grupos “antifas” de “terroristas”, ou com que a grande mídia chamou de “terroristas” os “black blocks” , podemos levantar ao menos três razões para o epíteto não ter sido ainda aplicado à neonazista ou ao seu grupo até o momento.



1. Imperialismo cultural (Terrorismo pra quem?)



Cabe salientar que a aparente neutralidade contida no discurso dominante possui lado, interesse e, sobretudo, finalidade CLAROS. Como apontado por Roger Chartier: 

As percepções do social não são de forma alguma discursos neutros: produzem estratégias e práticas (sociais, escolares, políticas) que tendem a impor uma autoridade à custa de outros, por elas menosprezados, a legitimar um projeto reformador ou justificar, para os próprios indivíduos, as suas escolhas e condutas. 

A gênese do “terrorismo”, se inscreve na emergência da primeira República moderna, coube ao jacobinismo e ao famigerado Período do Terror ou meramente O Terror o parto dos “excessos”, já os  primeiros registros da aplicação vigente do termo “Terrorista”, remetem à guerra de libertação argelina contra o jugo imperial francês. Por curioso que seja, coube à luta justa pela reconquista de seu próprio território a depreciativa alcunha de “terrorista’, em detrimento dos abusos da dominação estrangeira (nos dois casos, levando em conta que a França ao período da Revolução de 1789, possuía territórios coloniais). Em linhas gerais, a história perene da aplicação do termo “terrorista” possui lado; pela perspectiva argelina de sua origem, possui também etnia e vítima. Povos coloniais gozam do privilégio de jamais serem vítimas de terrorismo, lhes cabendo também a exclusividade da prática. 


2. Privilégios da branquitude (Terrorismo de quem?)


Como apontado acima, incorrer em atos terroristas não pressupõe tornar-se notícia para todos. Em um país onde a maioria da população se autodeclara negra (IBGE), a reiterada e persistente queda do raio possui CEP e criminaliza sobretudo o negro da periferia.

Lembramos, com Achille Mbembe, que: “O Negro não existe, no entanto, enquanto tal. É constantemente produzido”. Podemos então perguntar se esta produção seria feita, entre outros lugares, através de narrativas relacionadas ao termo “terrorismo” - e a questão não é de difícil formulação.

Em outras palavras: quando sujeitos não-negros são retratados pela mídia em situação que implicaria em práticas “terroristas”, como são retratados? E como são aqueles racializados enquanto “não-brancos”?

Em 2011, a revista Veja publicou uma lista dos “dez terroristas mais procurados” pelo FBI. Além da patente ausência de brancos e da predominância de nomes árabes nessa lista, vemos pelas descrições que são, em sua maioria, sujeitos suspeitos de terrorismo, mas não é assim que o título os trata. Perguntamos então: e quanto os “réus confessos”?

A nosso ver, seria interessante, mas desconfiamos que a razão pela qual uma matéria com eles não exista seja a mesma pela qual não há “brancos” na lista citada: cometer um crime, confessá-lo e ser tratado ainda assim como “suspeito” até o “trânsito em julgado” é a perfeita definição de “presunção da inocência”.

Esse princípio de que, em teoria, “todos são inocentes até que se prove o contrário”, até hoje, na maioria das “democracias” ocidentais, embora se pretenda “universal” e aplicável “a todas as pessoas da nação”, infelizmente, só coube a brancos.


3. “Excludente de ilicitude, Seletividade Penal” (“Terrorista”, quem?)

Para além da raiz racial de sua atual aplicação, o termo terrorismo como aceito e praticado não poderia no atual estágio de naufrágio da democracia, estar associado à direita do espectro político. Os oligopólios midiáticos travam uma luta não apenas pela narrativa dos eventos recentes, mas tentam a todo custo dissociar-se do mal do qual são, não apenas cúmplices, coautores.

Sara Winter e seus 27 extremistas incorreram, talvez propositalmente, em mais de uma ação passível de tipificação penal ao longo sua “vigília” que desde maio esteve acampada na Esplanada dos Ministérios bradando palavras de ordem contra o Congresso e o STF. A questão que fica, portanto, após sua prisão é: por qual motivo não foram dissuadidos antes?

No Brasil, vigora uma tal “Lei Antiterrorismo” cuja definição de “terrorismo” exclui as ações realizadas durante “(...) manifestações políticas, movimentos sociais, sindicais, religiosos, de classe ou de categoria profissional, direcionados por propósitos sociais ou reivindicatórios, visando a contestar, criticar, protestar ou apoiar, com o objetivo de defender direitos, garantias e liberdades constitucionais, sem prejuízo da tipificação penal contida em lei” (Lei 13.260/16, Art. 2° §2).

Em seus malabarismo constantes para evitar relacionar “simpatizantes do governo” a “terroristas”, a mídia e as instituições aparentemente ignoraram que esses indivíduos que estavam declaradamente armados e decididamente voltados a atacar opositores caberiam perfeitamente na última parte do artigo (“sem prejuízo da tipificação penal...”). Assim, com Judith Butler, perguntamos: “como podemos entender os julgamentos fortemente normativos que acompanham o termo “terrorismo” nos dias atuais"? . Decerto, reforçar a prática dos ilícitos e delitos exigiria um malabarismo maior do que os já operados pela mídia golpista.

Lembramos, porém, que por menos e sem mais nem menos, centenas de jovens negros perecem nas mãos das forças de segurança anualmente em todo o país. Cremos que resta aos veículos de mídia o gosto amargo das vistas grossas ao que potencialmente ajudaria na queda do mais recente desafeto da Casa Grande, em que pesem todas as contradições no modo com que tratam os descendentes não-brancos da Senzala. 



Referências


BUTLER, Judith. Quadros de Guerra: quando a vida é passível de luto. Rio de Janeiro: Civ. Brasileira, 2015.

CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas e representações. Lisboa: Difel, 1990.


FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Tradução de Renato da Silveira. Salvador: EDUFBA, 2008.

MBEMBE, Achille. A crítica à razão negra. Trad.: Marta Lança. Lisboa: Antígona, 2014.

NOSSEK, Hillel. “News median-media events: Terrorist acts as media events”. In: The European Journal - cn I of Communication Research. (33). 2008. [link



Beatriz de Barros Souza, 31, é Mestra em Direitos Humanos pela USP, Bacharela em Relações Internacionais pela PUC-SP e atualmente faz Doutorado em Psicologia na UFES, com bolsa do CNPq.

Eudes Cardozo é professor de História, militante Comunista e pai do Pablo e do Arthur