Recentemente foi publicado neste blog o excelente Estado de Exceção de Trump: Fronteiras Raciais e Fraternidade Branca de Hugo Albuquerque no qual eu fui citado: Hugo tratou sobre as recentes medidas excepcionais de cunho racial nos Estados Unidos, por ordens de Trump, marcado pelo uso da Patrulha de Fronteira contra os ativistas negros. E ele trouxe o meu conceito de “fronteiras raciais”, devidamente creditado, das conversas que mantemos. Portanto, incentivado pelo meu camarada, e impelido pela urgência do momento em que vivemos, pretendo aqui aprofundar a reflexão que me levou a afirmar a existência de uma fronteira racial no Império erigido a partir das treze colônias. Não pretendo esgotar a complexidade da questão racial no EUA, mas apontar a complexidade desta, que fora capaz de suscitar uma frutífera discussão entre Karl Marx e Friedrich Engels.
Tocqueville deu um toque...
Na primeira metade do século XIX, o político e filósofo francês Alexis de Tocqueville faz uma viagem pelos Estados Unidos, colhendo informações e reunindo reflexões que seriam materializadas na sua obra de maior relevância, A democracia na América, publicada em duas partes em 1835 e 1840. Como não poderia deixar de ser, a questão dos escravizados negros no Sul foi tema de especial preocupação e alerta.
Comparando a escravização da antiguidade e a colonial, Tocqueville (2010, p. 243) chegou à conclusão de que a libertação do escravo colonial não lhe garantiria as condições necessárias para participar da vida civil, por causa de um fato inédito na História: a diferenciação racial. O escravo da antiguidade tinha como senhor alguém do mesmo fenótipo, de modo que, alcançando a liberdade, poderia se misturar facilmente entre os livres. Porém, segundo o autor, “a raça perpetua a lembrança da escravidão”.
Fazendo coro com Adam Smith, que o antecedeu, o filósofo francês buscou demonstrar a inviabilidade econômica do escravismo e a inevitável dissolução deste sistema econômico. Todavia, Tocqueville era pessimista e sentenciou: “O mais temível de todos os males que ameaçam o futuro dos Estados Unidos nasce da presença de negros em seu solo” (idem, p. 242), de modo que “não é no interesse dos negros, mas nos dos brancos, que se destrói a escravidão nos Estados Unidos” (idem, p. 244). A abolição da escravidão não seria a solução definitiva aos séculos de escravização de africanos, posto que os estadunidenses brancos jamais aceitariam que os negros fruíssem o acesso aos mesmos direitos reservados a si mesmos.
Se Tocqueville foi ágil em perceber o problema latente nos Estados Unidos, não ousou se despir da estreiteza da visão da classe dominante sobre o negro, colocando argumentos idealistas que reforçam uma visão do negro como um eterno e inato inimigo a ameaçar os brancos. O autor resumiu à ideia “guerra racial” o que a teoria marxista, confirmada pela História, colocaria em seu verdadeiro sentido: a luta de classes.
1861-1865: contradição armada no EUA; a amável contradição entre Engels e Marx
A Guerra Civil Americana, também conhecida como Guerra da Secessão, ocorreu entre a União (Norte) e os Confederados (Sul) durantes os anos de 1861 a 1865. No centro do conflito estava a abolição da escravização de negros nos Estados do Sul do país, cuja elite escravocrata, não obstante a negativa de estabelecer o trabalho assalariado, pretendia expandir a escravização para o Oeste, violando tratados de não proliferação da escravização. Estima-se que 970 mil pessoas tenham morrido no conflito, o equivalente a 3% da população estadunidense, algo como 9 milhões de estadunidenses hoje.
A Guerra Civil não foi um assunto meramente doméstico. Potências imperialistas da Europa, sobretudo França, governada pelo ditador golpista Luís Bonaparte, e a Inglaterra pretendiam reconhecer os Estados confederados como um país, após secessão do Sul, aventada pelos sulistas. A burguesia inglesa se sentia prejudicada pelo bloqueio imposto pelo presidente Lincoln à exportação de algodão. A intervenção só não ocorreu por conta da solidariedade dos trabalhadores europeus, simpáticos à causa abolicionista, ainda que prejudicados pela diminuição na produção têxtil.
Segundo um estudo de Kevin B. Anderson, em seu livro Marx nas Margens, que usaremos como referência para as citações a seguir, Karl Marx e Friedrich Engels tinham profunda preocupação com os rumos da guerra, conforme cartas trocadas entre ambos e artigos escritos por Marx para jornais europeus. Para Engels, aquela foi "a primeira grande guerra da história contemporânea", enquanto para Marx, foi “o maior acontecimento da época”.
A iminente libertação dos escravos foi vista com muito otimismo por Marx que, a despeito de acreditar que o Sul poderia vencer as primeiras batalhas, dizia: “Mas, com o tempo, é claro, o Norte vencerá, pois em caso de necessidade, ele pode jogar a sua melhor carta, a da revolução escrava”. Infelizmente, os Estados Unidos não eram como o Haiti.
Em uma análise militar, Engels confirma os anseios de seu companheiro: “Homem por homem, não há dúvida que as pessoas do Norte são marcadamente superiores às do Sul, tanto fisicamente, quanto moralmente”.
Com os olhos de quem acompanhava os acontecimentos enquanto se desenrolavam, muito antes da existência do Twitter, Marx e Engels compartilharam preocupação com a frouxidão do Norte e o fanatismo do Sul, tecendo, ainda, críticas à forma como Lincoln conduzia o conflito. O que os confederados desejavam não era tão somente uma separação, mas a conquista do Norte para impor a escravidão em todo o território dos Estados Unidos, generalizando a escravidão a ponto de rebaixar trabalhadores brancos do Norte à condição dos negros no Sul, conforme sintetiza Anderson (2019, p. 152): “uma nova forma de capitalismo, abertamente estruturado em linhas raciais e étnicas” Ah, se Marx visse os rumos que o Brasil tomou de 1888 até os dias de hoje!
Marx e Engels acreditavam que a guerra poderia ser uma segunda “Revolução Americana”. Sem deixar de reconhecer as fragilidades da União, Marx afirmava que “sem a considerável experiência militar dos imigrantes para a América, resultado da agitação revolucionária europeia de 1848-1849, a organização do exército da União levaria ainda muito mais tempo”.
Nesse sentido, cabe uma importante digressão histórica que nos deixa uma grande lição sobre o quanto a luta pela liberdade não é possível se restrita à estreiteza da ideia burguesa de Estado-nação.
Como bem apontado também pelo companheiro Hugo Albuquerque em nossas conversas, e vale registrar a título ilustrativo, em 1861 o revolucionário italiano e herói internacionalista Giuseppe Garibaldi, que lutou pela unificação da Itália e teve passagem relevante pela América do Sul, em especial no Brasil da Revolução Farroupilha e na luta para garantir a ainda frágil independência uruguaia, se voluntariou a comandar as tropas do Norte desde que fosse abolida imediatamente a escravidão: Garibaldi, no entanto, desistiu quando Lincoln não atendeu à exigência de declaração imediata da emancipação, o que só ocorreria em 1863. No dia 6 de agosto deste mesmo ano, o líder italiano escreveu ao presidente: "A posteridade vai chamá-lo de grande emancipador, um título mais invejável que qualquer coroa e maior que qualquer tesouro mundano” – contudo, já era tarde para Garibaldi se unir a Lincoln, pois ele estava em campanha pela libertação de Roma e, assim, conquistar a tão sonhada unificação italiana
Nesse contexto, algo, a muitos surpreendente, aconteceu em 1862: Engels discordou de Marx. Em carta enviada a Marx em 12 de Maio de 1862, Engels reclama sobre “a indolência e indiferença pelo Norte”, e pergunta, onde “entre o povo, há alguma energia revolucionária?”. Como dito, a Declaração da Emancipação só ocorreria, preliminarmente, em setembro daquele ano e passaria a valer apenas no início de 1863. Angustiava a Engels a falta de posicionamento da União contra a escravidão e incapacidade de conduzir a guerra em termos revolucionários. Em carta de 30 de julho, Engels aprofunda suas críticas, “escrevendo que a falta de progresso geral da União encorajaria algum tipo de acordo podre com a Confederação” (Anderson, 2019, p. 162).
Marx discorda do amigo em carta enviada no dia 7 de agosto. Segundo ele o Norte passaria a lutar de forma séria e conduziria a guerra em termos revolucionários, o que derrubaria os governantes dos estados escravistas do Sul. “Se Lincoln não ceder (o que, contudo, ele fará), haverá uma revolução. [...] Cedo ou tarde, me parece que uma guerra desse tipo deve ser conduzida de forma revolucionária, enquanto os ianques estão tentando até agora conduzi-la constitucionalmente”.
Sem a pretensão de esgotar todos os principais eventos daquele período, cabe lembrar que a Guerra Civil acabou em 9 de abril de 1865. A União venceu a Confederação no campo de batalha, mas a questão é: Marx estava certo?
“Não acho que quem ganhar ou quem perder, nem quem ganhar nem perder, vai ganhar ou perder. Vai todo mundo perder…” ou Não contavam com a minha dialética!
O sim ou não a certas perguntas é um idealismo não dialético, sobretudo quando se trata das ciências humanas. Marx e Engels não estavam trocando opiniões, nem mesmo fazendo previsões: estavam fazendo análises de conjuntura fundamentadas no socialismo científico por eles fundado. A revolução escrava poderia ou não acontecer; bem como o acordo podre entre os Confederados e Unionistas.
Na dialética materialista, que tem por base a noção da contradição - não nos conceitos, mas na realidade – , só se pode constatar uma colocação como errada se esta não tiver fundamentada nas condições reais de existência. A partir do momento que a guerra foi conflagrada, era perfeitamente possível uma revolução escrava. Possível, não inevitável. Não há fatalismo; tampouco livre arbítrio. Engels julgava a forma como Lincoln conduzia a guerra – e a possível revolução – com base nas possibilidades reais que ele tinha.
Não há como censurar o otimismo de um homem que, como Marx, tinha consciência e emoções tão revolucionárias. A revolução não aconteceu; mas a vitória do exército unionista sim. Se tomarmos em consideração só a rendição que ocorreu no ano de 1865, o que não faria sentido algum com o método marxista, diríamos que Marx foi mais preciso. Mas no conjunto de manifestações de Marx e Engels ficam nítidas as preocupações destes com a vacilação do presidente. A genialidade de Marx está em apontar a possibilidade da revolução enquanto expõe à posteridade a razão de não ter acontecido.
Mas Engels, camarada, expôs a angústia de um revolucionário que via no desenrolar da história o exaurimento das possibilidades radicalmente transformadoras dos trabalhadores, negros e brancos, nos Estados Unidos. “Há alguma energia revolucionária?”, escreveu, angustiado, alguém que via no que não estava sendo o que poderia ter sido. A podridão do que ocorreria em 1877 não estava posta; mas me arrisco a dizer que o Engels sentiu um cheiro azedo no ar.
1865 a 1877: Da “[real] land of the free” ao Acordo Podre
Em 14 de abril de 1865, Lincoln foi baleado. Sabiam que, por mais moderado que ele fosse, o maior e mais radical dos estadistas estadunidenses, não pararia apenas na Emancipação. Aos trabalhadores livres, faltavam todos os outros direitos. Marx sabia. Engels sabia. Os trabalhadores sabiam. Os burgueses sabiam. John Wilkes Booth sabia, e com o dedo no gatilho.
Abraham Lincoln morreu aos 15 de abril de 1865. Malcolm X morreu em 21 de fevereiro de 1965. Martin Luther King Jr morreu aos 4 de abril de 1968. Robert F. Kennedy morreu em 6 de junho de 1968. Huey Newton morreu em 22 de agosto de 1989. [...] George Floyd foi morto pela polícia de Minneapolis no dia 25 de maio de 2020. Minneapolis, em Minnesota, um estado do Norte dos Estados Unidos. Ao norte o bastante para não ser jamais confundido com o Sul. Donald Trump é de Nova York.
E as fronteiras, camarada? E as fronteiras, Hugo Albuquerque?
O devir revolucionário estadunidense entre 1861 e 1865; todas as armas carregadas! O devir do período entre 1865 e 1877 foi animador; a arma carregada estava sobre a mesa! O da década de 1960 foi bonito, também, mas a arma carregada só estava na mão inimiga!
A Reconstrução dos Estados Unidos foi o período que se seguiu à Guerra. Andrew Johnson ousou ser a encarnação das mais duras críticas, justas e injustas, que a esquerda proferiu contra Lincoln… sem as qualidades. Por mais que fosse um republicano, como Lincoln, buscou evitar o uso dos poderes presidenciais para impôr a ordem democrática aos estados confederados derrotados, terminando por quebrar qualquer resistência confederada. Mesmo se aliando aos democratas, e contando com o apoio da parte “moderada” do próprio partido Republicano, foi derrotado pela ala republicana radical que derrubou seus vetos e quase lhe impôs um impeachment.
Os Estados Unidos estavam entre uma reconstrução reacionária, que cederia espaço aos escravistas para que conquistassem um lugar ao céu estrelado da bandeira estadunidense, ou uma Reconstrução democrática, que, de fato, aconteceu no período supracitado. Negros podiam votar e ocupar posições de poder; 15 mil brancos confederados perderam direitos políticos.
Mas os radicais perderam espaço para os moderados. Em 1877 houve o que se convencionou chamar de Compromisso de 1877, ou, como convém chamar: acordo podre, entre democratas e republicanos, para garantir a posse do republicano Rutherford B. Hayes, como presidente dos Estados Unidos. Os soldados foram tirados do Sul; os negros da vida civil. Tocou-se a canção “Jump Jim Crown” e milhões de trabalhadores brancos dançaram a música ensurdecidos.
As fronteiras entre Norte e Sul deixaram de fazer sentido. O capitalismo em termos raciais, que Marx temia, se tornou real. Tocqueville teve provada uma das teses de sua obra: “O negro sempre será um estrangeiro”. A Secessão não foi efetivada com a independência dos Estados Confederados da América, mas com a secessão dos negros que, ainda que nascidos no país “Líder do Mundo Livre”, se tornaram algo pior que estrangeiros. Tornaram-se apátridas com documentação estadunidense.
Escravidão.
Segregação.
Encarceramento.
Só posso terminar com esta carta aos operários americanos, escrita por ninguém menos do que Lênin aos 22 de agosto de 1918:
Os representantes da burguesia compreendem que para o derrubamento da escravidão dos negros e o derrubamento do poder dos proprietários de escravos valia a pena que todo o país passasse por longos anos de guerra civil, por abismos de ruína, de destruições, de terror, que estão ligados a qualquer guerra. Mas agora, quando se trata da tarefa incomensuravelmente maior de derrubamento da escravidão assalariada, capitalista, do derrubamento do poder da burguesia, agora os representantes e os defensores da burguesia, bem como os socialistas-reformistas, assustados pela burguesia, que se esquivam da revolução, não podem e não querem compreender a necessidade e a legitimidade da guerra civil.
James Hermínio Porto da Silva é servidor público, mestre em direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, onde também se graduou. É membro do IHUDD, o Instituto Humanidade, Direitos e Democracia.
Referências
ANDERSON, Kevin B. Marx nas Margens – Nacionalismo, etnia e sociedades não ocidentais. São Paulo: Boitempo, 2019 [As cartas originais podem ser lidas aqui, em inglês]
LÊNIN, Vladimir Ilitch. Carta aos operários americanos.
TOCQUEVILLE, Alexis de. Democracia na América. São Paulo: Folha de São Paulo, 2011.