No último três de julho, dezenas de milhares de manifestantes lotaram a Avenida Paulista na terceira marcha contra Jair Messias Bolsonaro, o ocupante ocasional do Palácio do Planalto. A coincidência numerológica sedimentou a perda das ruas pelo mandatário do país, atolado no comando da gestão genocida da pandemia de Covid-19, a qual já ceifou centenas de milhares de vidas a mais no Brasil, em um misto de desapreço à vida humana com corrupção bilionária.

Os relatos objetivos se avolumam na imprensa, e são desnecessários de serem reproduzidos aqui. Os autores deste texto, e seus companheiros neste Instituto, lá estavam, marcharam e testemunharam os fatos que se deram. Resta um esforço para a reflexão, uma petição em prol do não esquecimento, que sempre mira na lembrança de que é possível um porvir. Uma petição nesta causa que é a defesa da liberdade. 

O estado de coisas diabólico do Brasil é, grosso modo, digno da mesma anomia que já condenou civilizações inteiras não apenas à destruição, mas também ao seu esquecimento. Dos povos de tempos imemoráveis dos quais só conhecemos os escombros, muitos dos quais não sabemos sequer o nome, nem a língua ou a escrita que usavam. 

Se é pela liberdade que lutamos, é sempre forçoso retomar uma arqueologia desta -- como já fizemos aqui neste espaço -- para recordar de sua causa primeira: ela mesma, uma deusa plebéia e feminina, esteve associada ao levante que garantiu aos romanos a derrubada da monarquia e a proclamação de sua República -- em uma revolução avant la lettre, ironias do destino, contra uma família despótica, vulgar e criminosa que aturdia os cidadãos romanos.

Pedindo licença a Marx no 18 de Brumário e ao leitor que nos indagará o que tem a ver os Tarquínios, e sua derrocada há mais de dois milênios e meio, com o Brasil atual, façamos uma breve digressão: Lá como cá, havia no poder um clã reacionário cujo líder, Lúcio Tarquínio ascendeu mediante um golpe contra seu próprio sogro e ainda viu seu filho, Sexto, envolvido em um crime hediondo que levou a jovem e casta Lucrécia a tirar a vida, o que despertou a revolta final da plebe contra o absurdo.

O que pouco se diz é que do levante patrício contra o déspota, se sublevou também a plebe, a qual substitui a tríade capitolina -- constituída pelos deuses Júpiter, Marte e Quirino, a divinização de Rômulo, o fundador da cidade -- pela tríade aventina, formada pelos deuses plebeus, Ceres, Líber e Libera, sim, a Liberdade. A plebe se fez encarnar em alguns patrícios de boa vontade, que lhes serviram de cavalos, para expulsar Tarquínio sem, no entanto, buscar um novo rei, mas instaurar uma República.

A farsa dos Bolsonaros é, nesse aspecto, a farsa de uma tragédia: a dos romanos sob os Tarquínios, cuja paixão em ato da plebe resultou em outro gênero dramático, certamente mais feliz com a derrocada do tirano e do regime. Se a História não se repete, talvez não se repita -- nem ela, nem nada -- identicamente, mas é possível que se reencene tantas peças sob tantas montagens diferentes, até em meios diversos. 

O ineditismo de cada caso e de cada experiência não pode ser confundido com a absoluta inovação, como se cada amanhecer fosse algo de natureza diversa em relação ao outro. Igualmente, o porvir não está dado, mas as experiências e o exemplo dos antigos nos permite encarar, inclusive, estóicos até mesmo desfechos inéditos e improváveis.

Caso a vida seja, também, tradução, como lembrará o nosso Aguilar, pode ser que os brasileiros sejam capazes de traduzir a vitória romana contra os Tarquínios. Fato é que a liberdade que os atravessou a liberdade, como deusa-orixá, que nos atravessa e nos possui aqui, transbordando as ruas hoje. 

A liberdade (liberty) contra a ideia freedom, a revolução contra a reforma, ambas vertidas como o mesmo “liberdade” em português -- a liberdade positiva, plena de carne, som e gosto contra o negativo puritano, a miséria do asceta livre apenas do seu corpo.

Ou a Estátua da Liberdade, que aparece como marco do nosso tempo-espaço, é ela mesma uma farsa, uma vez que quem está ali é Sophia e não Libera, como bem denuncia sua coroa com sete espigões. E o que diremos das estátuas da Havan, farsa das farsas.

A liberdade do liberalismo que nos trouxe aqui é qualquer coisa, menos a liberdade. Não nos esqueçamos dos antigos, suas lições, seus exemplos e maus exemplos. O preço disso, em termos materiais, é a peste, a fome e guerra, que soterra povos inteiros na poeira do tempo. O inverso, contudo, também é verdadeiro. É essa a petição, que se faz ao inclemente Tribunal do Tempo, um juízo suspeito.

Gregorio Gananian, 35, é cineasta e filósofo, contribuiu com todas as fotos deste post e sua concepção.
Hugo Albuquerque, 33, é advogado, mestre em direito constitucional pela PUC-SP, onde também se graduou e editor da Autonomia Literária, contribuiu com texto e sua concepção.