Entre as muitas faces do sionismo de Israel está a dominação cultural. Em sua obra, Fanon nos ensina que enquanto as justificativas biológicas do racismo caíram gradualmente em desuso após a Segunda Guerra Mundial, devido em particular a seu uso por parte do regime nazista, o racismo se vale cada vez mais de argumentos culturais para continuar inferiorizando as populações racializadas. Em outras palavras, a expressão formal do racismo 'renova-se', 'muda sua fisionomia'. Segundo o autor:
“O racismo é uma disposição inscrita em um determinado sistema. Uma sociedade ou é racista ou não é. Não há graus de racismo. Não é necessário dizer que tal e tal país é racista, mas que não há linchamentos ou campos de extermínio. A verdade é que tudo isso e muito mais existe no horizonte.”
Esta observação nos ajuda a pensar o colonialismo israelense e a dominação sionista porque Fanon nos adverte contra a armadilha que a renovação formal do racismo nos coloca: não é porque "camufla" que se tornará mais "aceitável" ou deixará de ter o horror em seu horizonte. Como psiquiatra praticante na Argélia nos anos 1950, Fanon foi um observador privilegiado da implantação de novas formas de guerra como a tortura, ação psicológica, reagrupamento forçado de populações, etc. também foram postas em prática em muitos outros lugares, como Quênia e Camarões. Ele também foi um grande analista da resistência física e psicológica a essas novas práticas de guerra, geralmente descritas como "pacificação", misturando os domínios civil e militar.
A partir de suas observações diretas, primeiro como psiquiatra e depois como combatente, Fanon elaborou algumas conclusões importantes. Bem ciente de que as técnicas de guerra desenvolvidas nos anos 40 e 50 foram de fato inspiradas por teorias mais antigas, como as de Gallieni ou Lyautey no início do período colonial, ele gradualmente identificou o próprio colonialismo com a guerra perpétua: “O colonialismo é uma força de guerra”, ele escreveu [1]. "A situação colonial é antes de tudo uma conquista militar continuada e reforçada por uma administração civil e policial", acrescenta [2].
A questão do racismo e o da guerra, que nada mais são do que os dois pilares do colonialismo, estão ligadas. O que é importante lembrar de tudo isso é que as formas de colonialismo, uma mistura singular de racismo e guerra, são perpetuamente renovadas e ocultas para permitir que a violência/o avanço colonial perdure. E é esta pluralidade do colonialismo, esta capacidade de mudar, de camuflar e de ampliar seu campo de ação, que tem permitido à Israel permanecer uma sociedade colonial - e portanto racista - oprimindo e dominando em todos os sentidos, inclusive culturalmente através do apagamento da culinária Palestina ou da sua apropriação. O Vegan-washing praticado por Israel, por exemplo, se utiliza de uma causa legítima de combate a exploração e consumo animal, transformando-a em mera ferramenta de projeção de imagem positiva no cenário político internacional, manobra que se mostra particularmente insidiosa quando exploramos suas contradições. Como apresentado por Ahmad Safi, diretor executivo da Palestinian Animal League, em seu artigo sobre a disponibilidade de botas de couro vegano para soldados do IDF (o exército e ocupação israelense), o problema é:
“o uso das supostas “credenciais veganas”das forças armadas, cujo papel é sustentar a ocupação ilegal de terras palestinas através de armas e força bruta, como meio de perpetuar a retórica do governo israelense de que o IDF é o “exército mais moral do mundo”.”
No campo da culinária, o vegan washing israelense também não falha em expressar a violência colonial, apropriando-se das tradições culinárias do território ocupado. Em artigo para o Washington Post, a pesquisadora palestina Reem Kassis nos relata sua confusão ao localizar diversos pratos da culinária de seu povo listados no menu de um restaurante israelense no qual almoçava a convite de amigos:
“Me senti confortada em comer um freekeh que tinha o gosto daquele feito pela minha mãe. Mas também fiquei frustrada em ver os melhores pratos palestinos que eu já provei desde que cheguei nos Estados Unidos sendo servidos em um restaurante israelense - sem qualquer menção às suas origens, nem às origens da maior parte dos pratos no menu, muitos dos quais reconheci como refeições icônicas da minha infância.”
Longe de ignorar os processos históricos pelos quais a culinária evolui e se transforma, Kassim nos esclarece que não ignora a existência de processos de difusão cultural:
“Mas difusão cultural é diferente de apropriação cultural. Difusão é o resultado de pessoas de diferentes culturas vivendo próximas e interagindo ou aprendendo umas com as outras. A apropriação cultural, por outro lado, depende de expropriação e consequente apagamento, seguido da negação intencional dessas ações. Sendo assim, apresentar pratos palestinos como “israelenses” não apenas nega a contribuição palestina à cozinha israelense, mas apaga nossa história e existência.”
Esse processo de apagamento cultural é uma extensão natural da violência colonial israelense, que objetiva destruir o que não pode tomar e tomar o que não pode destruir. Essa relação se estende a todos os campos de ação do processo colonial, com particular significado no que tange à terra. A terra é um espelho político de resistência e identidade para os palestinos. E, para entender a importância da culinária Palestina diante do genocídio étnico praticado por Israel, é preciso antes compreender a importância da terra e agricultura palestinas, especialmente no que diz respeito ao cultivo de azeitonas. Notavelmente, Israel vem transformando a colheita de azeitonas, antes um momento de cooperação e convivência das comunidades palestinas, em horror e sofrimento, impedindo que famílias palestinas - as mesmas que as cultivam há centenas de anos - possam sequer regar as oliveiras. Somente na Cisjordânia há cerca de 10 milhões de oliveiras e a produção do azeite é um setor essencial na economia palestina, o que não impede colonos israelenses de arrancá-las e pisoteá-las. De certo modo, não é difícil compreender. São colonos, do latim colonus: pessoas que se instalam na terra que, justamente por não as pertencer, é passível de ser pisoteada. Arrancar as oliveiras é tentar arrancar a Palestina, sua identidade, cultura e todos os elementos que envolvem a vida de seu povo.
Portanto, a soberania alimentar é uma das muitas coisas na Palestina que está hoje sujeita ao controle israelense, o qual usa de estratégias sujas como a contagem de calorias para submeter populações de regiões inteiras a um verdadeiro genocídio nutricional sem jamais, no entanto, desrespeitar as ditas leis humanitárias. Alguns dos impactos diretos na produção e consumo local de alimentos são a imposição de políticas de apartheid e leis que restringem ou proíbem o comércio palestino, a destruição de suas plantações e a restrição da água. Pouco a pouco, os sionistas tentam apagar os laços históricos e de identidade que os palestinos têm em seu território. Por isso, em um contexto de conflito e instabilidade profunda, o povo palestino se volta para o que é mais íntimo, familiar e com o qual sua memória histórica persiste ao longo do tempo: a comida.
A cozinha palestina é caracterizada pelo conhecimento transmitido de geração em geração, assim como as experiências e narrativas imersas no conflito. Para alguns, cozinhar é preservar e sustentar uma cultura ao longo do tempo, o que para a população palestina tornou-se um elemento de reafirmação da identidade, diante da diáspora palestina ao redor do mundo. Por trás da cozinha e das deliciosas receitas, há política e resistência. Diante disso, podemos entender porque a apropriação cultural da culinária palestina por Israel não é um gesto menor, mas parte de um processo violento de expropriação e extermínio. Nos solidarizamos profundamente com a luta palestina pelo direito à sua existência e história em todos os campos, saudando e honrando sua resistência. Mesmo sob terras secas e ventanias impiedosas, as oliveiras insistem em florescer, enquanto houver oliveiras, haverá Palestina.
“Se as oliveiras conhecessem as mãos que as plantaram, seu azeite se transformaria em lágrimas.” - Mahmoud Darwish.
REFERÊNCIAS
[1] “Pele negra máscaras brancas”, em Frantz FANON, Euvres, La Découverte, Paris, p. 137.
[2] "Racismo e cultura", em Por uma Revolução Africana, em Frantz FANON, Euvres, op. cit., p. 719.