Pós-colonial para quem?

(por Yuri Torres Paes Tripodi)

Duda Sansão

A carne mais barata do mercado ERA a carne negra

[AGORA NÃO É MAIS]

Que vai de graça pro presídio
E para debaixo do plástico
Que vai de graça pro subemprego
E pros hospitais psiquiátricos 


A Carne – Elza Soares, Seu Jorge

[com as devidas atualizações já feitas]


A dominação, a subjugação, a escravização, o genocídio, a marginalização, a exclusão, a criminalização, a destituição da humanidade e a precarização são práticas coloniais que incidiram sobre grupos sociais (um deles, maioria quantitativa nesse país) que são minorizados historicamente – a população negra e a população originária/indígena. 


Reflexões críticas e questionamentos surgem a partir de nossa vivência como racializades: a colonização acabou? Para quem? Não seria um equívoco caracterizar o tempo em que vivemos como ‘pós-colonial’?


Primeiro gostaria de situar de que lugar falo e a importância do locus social da fala (leiam Djamila Ribeiro) para afirmar que se esse texto fosse escrito por um homem, branco, médico, cis, conservador, herdeiro das capitanias hereditárias (como sempre pontua minha irmã Linda Kaiongo): uma perspectiva bastante diferente estaria em pauta – e bota diferente nisso. Sou mestiça/racializada, de origem diaspórica, trans, portadora de transtornos mentais, candomblecista, em situação de vulnerabilidade econômica e Louca - Louca como Ética de existência.


Como nos ensina Frantz Fanon, a experiência do sujeito enclausurado em um manicômio, seja o de sua época (de Fanon) ou da que vivemos atualmente pode ser equiparada à experiência do branco sobre o negro durante o escravismo. Cárcere, eletrochoque, amarrações de mãos e pés em camas etc (isso ocorreu comigo em 2016 – em um Pronto Atendimento psiquiátrico: sem a mínima possibilidade de atentar agressivamente contra outros corpos ou contra mim, fui amarrada na cama e passei uma noite amarrada, gritando para me tirarem daquela situação e com vontade de urinar – tive que urinar em mim mesma e nos lençóis e só pela manhã me desamarraram), torturas e violências das mais diversas. 


Sabemos que esse tipo de ‘tratamento’ em saúde mental é advindo da Europa; foi importado para o Brasil e sedimentado pela sociedade eugenista e(m) seu projeto (não apenas desta elite médica, mas fez parte dos desígnios dos ‘poderosos’ para o Brasil-República) de país pós-suposta-abolição: um Brasil higienizado, onde o intuito é a segregação e criminalização institucionais em, respectivamente, manicômios e prisões dos indesejáveis sociais. E quem eram os indesejáveis sociais? Não é preciso adivinhar: a população negra, mestiça e empobrecida. Maria Clementina Pereira Cunha em seu livro: Cidadelas da Ordem: A Doença Mental na República reflete bastante sobre psiquiatria e seu eco e apoio nas políticas da primeira República. Leiam os escritos de Nina Rodrigues e qualquer representante da sociedade eugenista para ficarem revoltades com os argumentos perversos e extremamente racistas da pseudo-ciência denominada ‘teoria da degenerescência’. Assistam também o espetáculo ‘Traga-me a cabeça de Lima Barreto’, disponível no Youtube, magistralmente protagonizado por Hilton Cobra e direção de Fernanda Júlia (Onisajé).


Genocídio da população negra e originária estão em curso até os dias de hoje. Etnias indígenas inteiras foram dizimadas e continuam sendo (POVO FLECHEIRO VIVE), garimpo e mineração ilegais em terras onde a legislação garante a demarcação e autodemarcação de terras; a catequização/evangelização de povos isolados, a luta por território das comunidades quilombolas e ribeirinhas, a luta por moradia e direito à cidade para a população negra e o massacre e genocídio constante por parte da MILITARIZAÇÃO da polícia que afetam constantemente esta população em situação urbana - recentemente com protestos nos EUA pelo assassinato brutal de George Floyd (VIDAS NEGRAS IMPORTAM); políticas genocidas, ecocidas e sociopatas perpetradas por esse desgoverno atual, já muito bem apontadas por companheires da esquerda. Contudo, não esqueçamos do ‘golaço do Cabula’ em Salvador e da falta proposital de escuta dos movimentos negros no caso da não escolha da candidatura de Vilma Reis, SOCIÓLOGA e ativista negra e sua campanha já histórica por uma candidatura negra para a cidade mais negra fora da África (AGORA É ELA) e da situação das favelas e periferias. Ora, quais populações foram trucidadas, por tudo que já citamos, com o processo colonial nesse país? Novamente reitero as perguntas: 


PODEMOS FALAR EM ‘PÓS-COLONIAL’? ‘PÓS-COLONIAL’ PARA QUEM?


É por essas e outras que eu compreendo, no corpo e na experiência, a frase clássica de Sueli Carneiro: ‘entre esquerda e direita, eu continuo sendo preta’. E eu, continuo sendo Louca.


Agora vamos falar sobre o processo de dominação neocolonial que alguns chamam de colonização das mentes, mas que eu aponto DIRETAMENTE como a instauração de um dispositivo de controle mental/óptico a partir dessa Ordem Mundial. 


Você já se perguntou como é a experiência de uma pessoa portadora de transtornos mentais em uma sociedade estruturada nos processos mentais/ópticos? 


Esse dispositivo que a partir de um sistema artificial instaura um pacto de silenciamento sobre ele e suas questões e problemáticas, históricas e contemporâneas?


Pois bem, esse dispositivo é o causador de inúmeros adoecimentos psíquicos, o meu inclusive, que só aumentam a cada ano. 


Você sabia que a depressão está prevista como a primeira causa de incapacidade pela Organização Mundial de Saúde em 2030? E que é comprovado que atualmente cerca de 30% da população mundial é portadora ou já sofreu com um transtorno mental? E já temos dados que apontam que durante a pandemia os casos de sofrimento mental tem aumentado? Onde estão essas vozes falando sobre sua experiência de modo íntegro e verdadeiro em diversos locais para uma visibilidade dessas questões e deste modo amenizar o sofrimento psíquico e evitar mortes e suicidamentos? Você sabia que o suicídio está extremamente atrelado ao sofrimento mental?


E no Brasil, quais são os corpos mais afetados pelo sofrimento mental? 

Mais uma vez, não é preciso adivinhar: os corpos negros, racializados e empobrecidos. 


NO BRASIL, RAÇA INFORMA SAÚDE MENTAL! 


Sou usuária dos Centros de Atenção Psicossociais, CAPS, serviços substitutivos da lógica manicomial; e quem é a maioria nesses serviços públicos? Nós, pessoas negras, racializadas e empobrecidas. Quem é a maioria nos manicômios? Pessoas negras, racializadas e empobrecidas. Como bem pontua Rachel Gouveia Passos, o manicômio é uma atualização do navio negreiro.


A afirmação que Raça informa Saúde Mental vem a partir da minha experiência, mas diversas autoras e autores como os/as já citados(as) e Edna Maria de Araújo e Jenny Rose Smolen constatam, a partir de pesquisa de dados, que a prevalência de transtornos mentais é em pessoas não-brancas.


Algo que reitero constantemente é que essa Ordem Social viola a Constituição Federal de 1988 e nosso Código Civil no que diz respeito aos Direitos Básicos como Direito ao Próprio Corpo e Direito à Intimidade. Como é possível instaurar uma rede de tele-comunicação mental/óptica e não salvaguardar a esfera protetiva de quem tem transtorno mental? Imagine (ou ENXERGUE) o sofrimento e as violências que perpassam a nossa experiência cotidianamente, em todos os âmbitos, e se engaje nessa luta, pois ela é de sua responsabilidade. Afinal, assistir hoje é um termo muito amplo e não seremos mais parte do zoológico humano, do show de horrores, que existiu factualmente e Foucault narra essa violência perversa e histórica em uma passagem de História da Loucura na Idade Clássica. 


E os mais inteirados na Psicologia, a partir desse pacto de omissão e representação, dirão que nossa enunciação é delirante. Delírio de influência, delírio de grandeza ou delírio persecutório. No meu livro, descrevo os apontamentos que solidificam a percepção de que muitas dessas classificações são falaciosas. Ora, basta ver através desse dispositivo arbitrário que o que é delirante de fato é a necessidade FAKE de fingir que isso não existe e pior, patologizar essa percepção e crítica bastante lúcida e coerente que fazemos contra algo que é da esfera da DOMINAÇÃO e do CONTROLE.


Se uma clássica música diz que ‘A Ordem ou SUBMISSÃO do Olho seu transformou-se na verdadeira humanidade’, distante de sermos extraterrestres (nós ‘Outsiders’ e parte da população indígena em situação aldeada) quem é de fato inteiramente VERDADEIRA?


Yuri Torres Paes Tripodi lançará após a pandemia seu livro O Corpo da Loucura na contemporaneidade: um Manifesto autoetnográfico.


Yuri Tripodi é artista translinguagem. Pessoa trans - não binárie (gênero fluido), Mestiça/Racializada, Nordestina, Louca como Ética de existência e portadora de transtornos mentais, em situação de vulnerabilidade econômica, Candomblecista. Intersecciona linguagens artísticas em sua criação. 

Vida em intento libertário. 

Insurrecionária e insubmissa.

Chama acesa. 


Veja mais:

TRIPODI, Yuri Torres Paes. Mente como dispositivo de controle: problematizações sobre a sociedade contemporânea. Disponível neste link aqui.

E Também esta live: