O Estado de Exceção Racial de Trump: Fronteiras Raciais e Fraternidade Branca

(Por Hugo Albuquerque)

Hugo Albuquerque


Noah Berger/Associated Press


"Por que pedem que eu vá à guerra para matar pessoas, quando, em Louisville, os negros são tratados como cães?”

(Muhammad Ali sobre a Guerra do Vietnã)


Processos históricos relevantes raramente aparecem com o destaque que merecem – no máximo, isso acontece com seu desfecho, o que pode levar muitos anos ou séculos. A revolução ou o seu inverso começam com uma nota desapercebida de canto de página, dificilmente com uma manchete. 

Algo assim está ocorrendo neste exato momento nos Estados Unidos: uma polícia militarizada federal foi enviada por Trump para reprimir os manifestantes antirracistas que ainda resistem nas ruas americanas, em cidades como Portland, no Orégon, bem longe da fronteira – enquanto se discute seu envio para Chicago, no Illinois. E não é qualquer polícia, mas sim a Border Patrol, a poderosa Patrulha de Fronteira dos Estados Unidos da América. 

Das maiores polícias federais americanas, a Patrulha de Fronteira ganhou protagonismo na gestão Trump em razão da política de repressão total à imigração, o que inclui o uso de campos de concentração que chega a separar pais de suas crianças – e que sequer foram desmontados nesta pandemia de Covid-19.

Em tempos de retórica inflamada em relação à China, marcada por acusações contra Pequim geralmente ligadas aos direitos humanos – seja pela questão das manifestações de Hong Kong ou dos uighur, uma minoria étnica de maioria islâmica no noroeste do país –, ironicamente este também é o momento em que os Estados Unidos resolveram tratar, definitivamente, imigrantes hispano-americanos como não-humanos e, em seguida, manifestantes internos da mesma forma.


Necropolítica e a Insustentável Leveza do Humanismo

O filósofo camaronês Achile Mbembe nos lembrará que antes do horror do campo de concentração, houve a experiência do colonialismo europeu, principalmente em África, desumanizando, massacrando, cometendo “genocídio” antes mesmo dessa palavra existir.  

É possível argumentar que antes do colonialismo, europeus praticavam formas de controle e massacre entre si, embora talvez de maneira amena, o que piorou ao se defrontar com sua chegada às Américas e à África, lidando com culturas muito diferentes e fenótipos igualmente muito distantes – causa e conseqüência de uma eugenia.

Hoje, os americanos sob Trump resolveram que os fluxos de imigrantes ilegais, antes tolerados para gerar uma massa de trabalho clandestina e sem direitos, devem ser barrados – inobstante o papel da ação americana em sabotar as possibilidade de desenvolvimento do México e da América Central –, mas é interessante notar como essa desumanização passa a ser expandida para dentro.

O “humano” surge como aquele não-matável, oposto às outras formas animais, estas sim matáveis, mas que encontra clivagens: o humano nacional versus o estrangeiro – mas também o escravo, as mulheres etc – no qual o marco de diferenciação é e sempre será: quem pode ter o corpo violado à priori? Ao cidadão, conserva-se a dignidade de, ao menos, se realizar um julgamento farsesco para poder “matá-lo como um cão”

Podemos falar, desde os primórdios da civilização de uma Biopolítica, na qual os homens aprenderam a cultivar os vegetais, depois a vida animal em rebanhos para cruzar a fronteira e chegar à própria espécie: a escravização como cultivo do próprio humano pelo humano – e Marx será feliz ao cunhar o termo “proletariado”, de prole.

Conceito autoevidente, a “humanidade”, os iguais a nós, se torna uma questão importante para os povos quando a civilização descobre a potencialidade da exploração do humano pelo humano: só falamos em humanidade, porque a ideia de desconsiderar, submeter ou até exterminar nossos iguais entrou na ordem do dia, como fato quotidiano.

O tema daria uma larga discussão filosófica, histórica e arqueológica, mas o que interessa é que técnicas de domínio empregadas por um povo contra outros, não raro, acabam sendo reutilizadas pela elite deste mesmo povo para com suas rebeliões internas. É a insustentável leveza do humanismo, mas também da nacionalidade. 


As duas fronteiras americanas

Os Estados Unidos possuem duas grandes fronteiras terrestres: uma com o pobre México, outra com o rico Canadá e, embora a princípio elas sejam legalmente a mesma a coisa, rapidamente percebemos que são duas coisas a priori iguais, mas a posteriori muito diferentes: como os Estados Unidos podem tratar suas fronteiras de formas tão distintas?

Enquanto o Canadá, cuja chefe de Estado é a Rainha da Inglaterra, é quase um delírio normando: de origem francesa, eles tomaram a Inglaterra no século 11 e pretendiam fustigar também o Rei de França, gerando uma grande vastidão de súditos francos-britânicos. O Canadá, por vias outras, é um grande ajuntamento de terra pouco povoado, onde vive uma população francófona e anglófona, sob a coroa inglesa, com seu próprio parlamento e províncias bastante autônomas.

Já o México é o inverso disso: com um povo mestiço entre os nativos locais e espanhóis, o país está fora de um cosmopolitismo branco: seja porque o elemento católico e latino nos Estados Unidos não é lido como parte de uma branquitude de primeira classe ou porque o fenótipo indígena dos mexicanos não permita isso.

Em outras palavras, por isso o México tem uma fronteira terrivelmente securitizada, com a discussão inclusive da construção de um enorme muro na fronteira, proposta de campanha de Trump o qual seria tanto mais um monumento do que um marco segregacionista: a fronteira entre Estados Unidos e México está, pelo menos desde os anos 1990, separada por cercas e um grande contingente da Patrulha da Fronteira que inicia esta conversa.

Paradoxalmente, enquanto o México é tratado dessa forma, a fronteira entre Estados Unidos e Canadá é quase uma zona de trânsito que marca o universalismo do mundo branco que se encontra e conspira junto; ironicamente, o México é quem foi invadido pelos Estados Unidos e perdeu grande parte de seu território, enquanto foi a partir do Canadá que os ingleses ameaçaram a soberania americana, gerando a Segunda Guerra da Independência em 1812.


Quando os ativistas se tornam “mexicanos”

É evidente que grande parte dos ativistas que se levantaram nas ruas americanas, em protesto contra o assassinato cruel do cidadão negro George Floyd por um policial branco, são negros ou pessoas de outras etnias movidas contra a chaga persistente de exclusão e opressão contra os negros no país. 

Mas a “mexicanização” desses ativistas não é apenas parte de um processo de racialização dos ativistas em seu devir-mexicano, isto é, “uma vez que vocês se levantem contra o dispositivo racial, vocês não são mais brancos (e logo, menos cidadãos)”: ela é uma espécie de desnacionalização dos ativistas – e uma estrangeirização que caminha no sentido de uma desumanização deles.

É o caso, pois, de falarmos em fronteira racial, como bem lembrado por James Hermínio Porto da Silva, em conversa sobre o assombro do uso da Patrulha de Fronteira contra os manifestantes: em resumo, a fronteira, em si desaparece, podendo ser relativizada: os canadenses, pelo menos os franco-britânicos, surgem um estrangeiro quase nacional num panorama de cosmopolitismo branco, enquanto os integrantes do Black Lives Matter (Vidas Negras Importam) se tornam os estrangeiros indesejáveis em sua própria terra – os mais-do-que-estrangeiros, estrangeiros não-humanos.

A partir daí, percebemos como o elemento superestrutural da raça é o elemento constante do Estado Americano: não que isso seja uma novidade no mundo, mas há de se convir que uma hiperracialização é o elemento central mediante o qual os Estados Unidos ordenam sua política, seja ela interna ou externa, o que se revela nesse exótico usa de uma guarda de fronteira federal contra ativistas, à revelia até mesmo das autoridades estaduais em um país de federalismo, em tese, forte.


Estado de Exceção Racial e o futuro da América

No começo de 2019, Donald Trump, furioso com a derrota nas eleições parlamentares de 2018, resolveu comprar uma briga contra a Câmara de Maioria Democrata se utilizando de uma de suas promessas de campanha: o Muro do México, que ele pretendia construir para sacramentar sua política de imigração – na verdade, uma política racial.

Depois de ter seus movimentos bloqueados pelo Congresso, ele se usou do famigerado Shutdown, isto é, a possibilidade do Presidente dos Estados Unidos simplesmente paralisar a Administração Pública Federal quando ocorre um impasse entre ele e os parlamentares. Os Estados Unidos pararam e Trump viu uma drástica hemorragia de popularidade, o que o fez recuar, pero no mucho.

Logo, Trump utilizou da famigerada Lei Nacional de Emergências, uma estranha lei federal aprovada pelo Congresso em 1976 que permite ao Presidente usar de poderes extraordinários em alguns casos para, através de um decreto de emergência, prosseguir a construção do Muro do México, mesmo com o Congresso vetando o uso do Orçamento para tanto. 

Nesse ínterim, em uma verdadeira quebra de braço de Trump contra juízes de primeiro grau, o Muro do México segue sua construção aos trancos e barrancos debaixo de declaração de emergência de Trump, o que consiste em algo inédito: essa é a primeira vez que um Presidente dos Estados Unidos proclamou a emergência para, vejamos, contornar a competência constitucional exclusiva do Congresso em controlar o Orçamento Federal. 

A cúpula democrata, contudo, parou por aí no tensionamento contra Trump, gerando um acordão espúrio onde a presidenta da Câmara Nancy Pelosi foi questionada pela deputada federal Alexandria Ocasio-Cortez por permitir um “meio-termo” em relação ao intolerável.

O levante racial depois da morte de George Floyd veio em um momento posterior, ainda este ano, quando a política de Trump para a pandemia de Covid-19 se mostrou fracassada e ele, simplesmente, buscou, agradar a sua base branca – e muitas vezes racista ou, até mesmo, supremacista branca – diminuindo o episódio de violência racial, ao se mostrar mais indignado com os protestos do que com o histórico de violência policial sistêmico contra negros.

A raça surge como elemento superestrutural necessário para os Estados Unidos funcionarem, mostrando que apesar dos avanços desde a abolição da escravidão, a Guerra Civil americana é uma grande guerra inacabada de fato – a outra é a Guerra da Coreia, ao menos inacabada de jure, por um armistício que beira seus setenta anos. 

E raça lá cumpre um importante elemento, não apenas para a divisão da sociedade em classes sociais, distribuindo trabalhos piores para alguns grupos em privilégios do outro, mas como um elemento cultural importante que torna opaca a própria divisão em classe: a existência de trabalhadores e proprietários acaba ofuscada pela divisão da sociedade em comunidades raciais segregadas – não à toa, o Partido dos Panteras Negras começou a ser mais perseguido quando, vejamos, passou a construir pontes entre os negros e a classe trabalhadora branca.

A hiperracialização americana – diferentemente do dispositivo racista brasileiro, que, ao revés, nubla as fronteiras raciais para explorar a grande maioria negra – opera, contudo, não apenas em âmbito interno como externo, delineando a ação americana e construindo uma divisão internacional do trabalho nesses termos, de uma hegemonia branca internacional, que admite alguns povos amarelos e semitas como sócios menores, relegando negros e indígenas à base da pirâmide.

A partir daí, os Estados Unidos deixam de ser um “projeto nacional” para se tornar um projeto político de construção do capitalismo global sob o signo racial, opondo uma fraternidade de nações brancas dominantes contra a miríade de povos não brancos, inclusive dentro do seu território – como lembra o professor Paulo Arantes, ao dizer que antes de discutirmos se Trump é ou não fascista, temos de recordar o quão segregacionistas eram os nazifascistas europeus, os quais copiaram as leis segregacionistas americanas contra suas minorias.

Não é de se estranhar, portanto, a forma como Trump se relaciona com Bolsonaro – e como o último, ao contrário de ser “submisso” aos Estados Unidos, apenas recorre a um aliado preferencial na mesma guerra pela garantia da oligarquia global e da aliança entre os povos brancos contra as minorias de todos os cantos. O colonialismo não é geográfico, mas ontológico e o dispositivo da raça, em que pese as diferenças de canto a canto, é central para entender esse jogo.

O que Trump está fazendo não difere em natureza de muito do que foi, hediondamente, feito nos Estados Unidos ao longo do tempo, mas implica em um desmontar de instituições antes mais sólidas, muitas delas conquistadas à base da luta social, um equivalente racial ao avanço da espionagem contra cidadãos americanos pelas gestões de Bush e Obama – e esse marco de desmonte da estrutura de direitos dos Estados Unidos, marcado pela estratégia trumpista de “avança e recua”, algo tão comum aos nossos ouvidos acostumados à cacofonia bolsonarista, mostram que Hong Kong fica, na verdade, em Portland e os supostos campos de concentração uighur em vez de ficarem no Noroeste chinês estão bem ali no Texas.

Hugo Albuquerque, 32, é advogado, mestre em direito constitucional pela PUC-SP, onde também se graduou, membro do Instituto Humanidade, Direitos e Democracia -- IHUDD e editor da Autonomia Literária