"Negos" e "Niggas" - Parte 1

(por Eudes Cardozo)

Duda Sansão



“… É sempre a relação direta dos donos das condições de produção com os produtores diretos – relação que sempre corresponde naturalmente a um estágio definido dos métodos de trabalho e, assim, da produtividade social – que revela o segredo mais íntimo, a base oculta de toda estrutura social e, com ele, a forma política da relação de soberania e dependência; em suma, a correspondente forma especifica de Estado. Isso não impede que a mesma base econômica – do ponto de vista de suas principais condições – devido a inúmeras circunstâncias empíricas diferentes, meio ambiente, relações raciais, influencias históricas externas, etc., apresente infinitas variações e gradações de aspecto, o que pode ser avaliado tão-somente através da análise das circunstancias conhecidas empiricamente.” (Marx, O Capital, 1985, v.5, p.251)


As manifestações contra o visceral racismo que opera junto às forças policiais estadunidenses suscitaram em parcela considerável da população brasileira – mormente entre as esquerdas, por curioso que seja – o questionamento sobre um hipotético não posicionamento dos negros brasileiros contra a violência policial e o racismo também vigentes em nosso país, alegando-se até mesmo uma provável indolência enquanto causa da suposta “inércia”, algo que como um: “os negros que aqui se açoita não revidam como lá”. Antes de apontar respostas profundas para um questionamento raso e um tanto grotesco em um país cuja burguesia “branca” sequer uma revolução para chamar de sua conseguiu produzir, questionamento este que também não oculta seu caráter racista (ainda que o maquie), cabe em primeiro lugar dizer que tal “afirmação” é falsa.

É dado sabido que desde o primeiro desembarque de um navio negreiro nas costas do Novo Mundo, inaugurando a destrutiva e devastadora empreita colonial europeia, registrou-se resistência, como apontado por João José Reis: “Desde que pisaram neste lado do Atlântico como escravos, os africanos conspiraram contra os senhores. A primeira grande rebelião escrava no Novo Mundo parece ter sido feita pelos cativos de Diego Colombo, filho do ‘descobridor’ Cristóvão, no Natal de 1522.” (REIS, 1996. p.9). Além da proposição ser falsa e só encontrar ressonância nos vastos e vagos sítios da internet onde infelizmente a reflexão meditada é escassa, a comparação é descabida, posto que os modelos de colonização e constituição dos países em análise são completamente distintos, resultando em formas distintas de sociabilidade e, por conseguinte, formas diferentes de discriminação racial e diferentes respostas à estas. No mais, cabe dizer que a odienta e nefasta empresa escravagista causou impactos profundos e ainda hoje irreparáveis no seio de ambas sociedades. Como se pretende expor a seguir:

 

Prólogo/Áfricas:

 

Parte de muitos dos enganos (involuntários) e tantos outros engodos (deliberados) no que tange ao trato com os africanos inseridos à força pelos grilhões coloniais na América se deve ao descaso ainda vigente no trato destinado à sua terra natal, a qual seja: o continente africano. 20% de toda a terra firme do planeta se condensa sobre o vasto continente africano. Tornou-se lugar comum a concepção geral de África/País ao que de fato é hoje um conglomerado continental de 54 países “independentes”, dois territórios em disputa ou em ocupação temporária e tantos outros questionáveis e em vias de revogação.

A atual configuração sócio política do continente se deve a um passado não muito distante de recorrentes violações, saques e invasões europeias. Tomar todo o continente devastado enquanto uma única África é mais uma vez saquear as nações africanas, subtraindo delas; desta vez sua história, cultura e tradições. Não sendo o propósito deste breve tratado adentrar nos pormenores das inúmeras nações e reinos ao período inaugural do sistema atlântico de tráfico escravagista, cabe salientar apenas que a origem dos escravizados conduzidos às colônias britânicas eram as terras hoje conhecidas por África Ocidental localizadas entre a África subsaariana e o centro e sudeste Africano, milhas e milhas distantes dos portos escravagistas portugueses localizados na África Central, a porção equatorial do continente. Traduzindo para uma linguagem mais acessível e para a configuração atual das nações Africanas, a nação de Kunta Kintê (Gambia), protagonista do célebre Roots de Alex Haley estaria à mais de 6.500 quilômetros de distância da de Zumbi (Angola).

 

Amérikkka (Land of the free):

 

“A coisa mais importante a se entender a respeito da história americana, escreveu o senhor Ibis, em seu diário com capa de couro, é que tudo não passa de uma história de ficção... É uma boa ficção, continuou... pensar que a América tenha sido fundada por peregrinos à procura da liberdade de acreditar no que quisessem, que eles tenham vindo para as Américas para se espalhar, se procriar e preencher a terra vazia.”  (GAIMAN, Neil. American Gods. P.87)

 

O extenso, e hoje acessível, rastro investigativo deixado pela abundante produção sobre o tema colonial estaciona primeiro em Sergio Buarque de Holanda, não em seu clássico Raízes do Brasil onde (de maneira tímida) as mazelas do convívio social são expostas e onde a tese do “Homem Cordial” de Ribeiro Couto é aprofundada, é na introdução de Visão do Paraíso que o autor esboça a nítida divergência entre os processos de colonização Inglês e Português.

A pesquisa de Sérgio Buarque encontrou “diferença sensível entre os dois casos” (HOLANDA, 2010. p.6), além das muitas distinções entre costumes e cultura de Ibéricos e Anglo-saxões, a que mais se afirma é a do culto (comum, mas nem tanto) religioso cristão; puritanos reformados no caso inglês e católicos apostólicos romanos no caso português. O cerne do autor é a busca do motivo edênico (encontro com o paraíso terrestre) compartilhado pelos europeus no advento do contato com o Novo Mundo nas américas, e a subsequente ocupação do território, ainda que o tema raça e racialidade não seja abordado os apontamentos nos são comuns e é no mito edênico que a força da construção da sociedade das colônias britânicas na Amérika encontrará sua raiz e “a mais poderosa e ampla força organizadora na cultura Americana”. (WILLIANS apud HOLANDA, 2010. p. 7)

Divergindo em suas raízes culturais derivadas de diferentes tradições e diferentes liturgias cristãs, os motivos da ocupação se mostram avessos e até mesmo contrários. No caso da América anglo-saxã, esta foi primeiro intencionalmente colonizada; já na América-ibérica (termo do autor) a colonização não chega a ser inicialmente pretendida, tendo sido esta antes “conquistada”. E é esta diferença, a motivação do recomeço, do “ato da criação”, da reconstrução embasada no mito edênico da colonização apontado na obra que reside diferença significativa entre as estruturas constitutivas das formas de sociabilidade ao norte e ao sul das Américas ocupadas e devastadas pelos europeus – com maiores peculiaridades no caso brasileiro como se pretende demonstrar a seguir.

Há que se ressaltar que a escolha introdutória propositada pela abordagem weberiana de Sérgio Buarque é também uma provocação. O que tornou possível que a verificação prática e objetiva entre as diferentes modalidades de construção e constituição dos países em observação tenha se demonstrado nítida para um pensador dos anos 30/50 do século passado e hoje, passados quase 100 anos, a pretensa problematização militante não consegue encontrar? Questão para outras querelas. Ademais, é na obra de Sergio Buarque que o motivo do “Destino Manifesto” se esboça com algum aprofundamento pela primeira vez no Brasil.

É na possibilidade do contato com a “terra prometida” e da “refundação edênica” que importante símbolo da constituição das colônias da Nova Inglaterra encontra raízes. Estariam os colonos do “Novo Mundo” (no caso anglo-saxão) predestinados a reconstrução dos valores cristãos corrompidos na metrópole. Imbuídos de um pretenso acordo com Deus, o proposito divino para com os peregrinos era o da restauração. Os bretões que primeiro aportaram nas terras ao norte da “descoberta” de Colombo, tal como os judeus da aliança mosaica, estavam comprometidos com a restauração puritana e a edificação da nova terra para honra e glória de Deus. Não é preciso dizer que os negros que serão introduzidos nas colônias enquanto ferramentas, utensílios, ou coisas desembarcadas dos navios negreiros junto ao gado de arado não constam dos termos do acordo. Por este prisma, os africanos não faziam parte da aliança, sequer foram convidados a compactuar da edificação da “terra prometida” e sua conversão em Novo Éden, o negro desembarcado enquanto mercadoria a partir de 1526 na “terra da liberdade”, demoraria ainda bons longos séculos para que pudesse cogitar a ascensão à condição de humano, não compartilhando junto aos povos nativos do destino manifesto dos colonos.

Os Estados Unidos têm investido sua religião, assim como sua ética, em sólidas ações lucrativas. O país adotou a posição inexpugnável de ser uma nação abençoada porque merece ser abençoada; e seus filhos, sejam quais forem as outras teologias que possam assumir ou desrespeitar apoiam essa crença nacional sem reservas. (REPPLIER apud GAIMAN, 2010. p. 302)

 

A hipótese aventada na tese de Sergio Buarque de Holanda, por mais que identifique um dos fatores do histórico de segregação e exclusão nas relações raciais não sana por todo a questão, afinal, tratamos de uma sociabilidade cristã, baseada no amor ao próximo e no seguimento estreito dos passos de Cristo, por óbvio que em dado ponto ao longo da longeva relação inter-racial hora ou outra o amor fraterno e as ações de graça prevaleceriam, com a graça de Cristo. A não ser que razões outras nublassem a prática rigorosa da fé em acordo estrito com os ensinamentos do Messias. Causas que não meramente o motivo edênico constituem o complexo advento da discriminação racial nos Estados Unidos.

Outro mito pode auxiliar a desvendar a particularidade do caso colonial britânico. Linebaugh e Rediker, ao verificarem a instituição do sistema colonial e seu projeto de expansão na obra A hidra de muitas cabeças: marinheiros, escravos, plebeus e a história oculta do Atlântico Revolucionário, indicam que a luta de Hércules contra a Hidra era a analogia utilizada pelos governantes e pensadores britânicos para definir a dificuldades da implantação de um sistema atlântico de conexões e mercados. As muitas cabeças da Hidra, seriam as resistências encontradas ao longo do empreendimento. A obra nos socorre pois tem por eixo central da análise apresentada que a instituição do sistema colonial é a introdução de uma nova realidade laboral. Singradas ondas, vencidas tormentas e tempestades, o que se estabelece junto ao mundo da expropriação; da competição imperialista; da disciplina de classe imposta pelos dirigentes das companhias é o capitalismo. Indissociável do que hoje concebemos por “racismo”, além do estatuto da escravidão, está a superação do mercantilismo e o estabelecimento do sistema capitalista entre a segunda metade do 1500 e o correr do 1700.

O labor “intelectual” (Hércules) dos dirigentes das companhias em constante luta contra as renovadas cabeças da Hidra atlântica (resistências), estende-se (pelo prisma dos atores) para a substituição do modal trabalho, e o sistema de acumulação privada subjugando a agricultura comunal. O estabelecimento da empreita colonial expande o horizonte humano, ao mesmo tempo em que altera profundamente as relações sociais. Modalidades até então impensáveis e impraticáveis de coerção e punição são anexadas ao modus cotidiano, “reafirmando a disciplina de classe pelo trabalho e pelo terror, novas formas de vida e de morte. Reorganizaram o trabalho e impuseram a pena de morte.” (LINEBAUGH; REDIKER, 2008, p. 263).

A peça A Tempestade de William Shakespeare é um dos motivos de A Hidra de muitas cabeças, não apenas pela relação direta entre o naufrágio do Sea Venture que compõe o primeiro capítulo da obra e sua provável inspiração na composição da trama de Shakespeare, mas principalmente pela analogia representada na relação entre Próspero e Caliban (Senhor e Servo) e de Caliban com Estéfano e Trínculo (cooperação entre os despossuídos):“Caliban representa os elementos culturais africanos, nativo-americano, irlandês e inglês, enquanto Trincúlo e Estéfano simbolizam os dois grandes tipos de despossuídos na Inglaterra...” (LINEBAUGH; REDIKER, 2008, p. 265), passando para uma análise da constituição da personagem proposta por Shakespeare, Caliban é retratado como uma criatura inumana, híbrida, monstruosa e desprovida de traços característicos das demais personagens humanas com quem contracena. O servo é retratado como alguém não humano. Como se pode verificar em Gonzalo ao se referir ao personagem: “como uma monstruosa Hidra erguendo suas cabeças informes, começou a silvar contra o Poder real e a autoridade de seu Soberano.” (SHAKESPEARE apud LENEBAUGH; REDIKER. 2008).

A obra relata em seus demais capítulos as diversas revoltas e levantes ocorridos no mundo Atlântico. Dando destaque para as modalidades de contenção de revoltas praticadas tanto em terra quanto mar, as punições cada vez mais severas aos subversivos e revoltosos encontra na execução dos subversivos sua forma definitiva. Os monstruosos revoltosos inimigos do progresso serão punidos de forma exemplar a fim de evitar possíveis futuras sublevações. Os revoltosos, os contrários a expansão do sistema colonial serão sem dúvida alguma os negros, a classe trabalhadora em sistema semi-servil, os nativos e também os condenados. A desumanização de Caliban amplia e justifica a aplicação de um sistema penal e judicial totalmente repressivo como poucas vezes de verificou na história humana. Caliban, nascido na Argélia, e sua revolta deveriam ser contidos.

O que se apresentou até aqui é um mero esboço do início do processo de instituição do racismo no território americano expropriado pelos europeus, seria importante inserir ainda um adendo sobre a participação dos negros no processo de independência (1776) e também sua atuação na guerra de secessão (1861 a 1865), o que avolumaria mais o texto que a proposta. Realizado o recorte de 200 anos de História norte americana, cabe um destaque para o fato de que a instituição do negro mão de obra, insumo da prosperidade e sucesso da empresa colonial junto ao destino manifesto irão estabelecer os marcos fundantes da sua desumanização.  Este rechaço explicito a participação ou mesmo a mera aceitação do negro no círculo vital e nos espaços de sociabilidade é marca indelével ainda hoje na sociedade norte americana, nos Estados ao Sul, marco inicial da invasão e penetração estrangeira continente adentro este ranço se fez e faz ainda mais presente.

Deste processo ancestral de exclusão e de recusa da participação do negro ao conjunto da humanidade, conforma-se nos Estados Unidos da América um sistema de “apartheid” que embasará leis e políticas púbicas que dividem a sociedade em duas modalidades de cidadãos no século XX: Brancos e não brancos. Sendo proibida aos últimos a partilha de espaços públicos, utilização de transporte urbano, beber água em bebedouros, e casamentos inter-raciais. As leis de segregação racial implantadas nos Estados Unidos no início do 1900 irão receber elogios até mesmo de Hitler em seu célebre Mein Kampf:

 

“Há um país em que, pelo menos, se notam fracas tentativas para melhorar essa legislação. Naturalmente não me refiro à nossa modelar República Alemã, mas ao Governo dos Estados Unidos da América do Norte, onde se está tentando, embora por medidas parciais, pôr um pouco de senso nas resoluções sobre este assunto. Eles se recusam a permitir a imigração de elementos maus sob o ponto de vista da saúde e proíbem absolutamente a naturalização de determinadas raças. Assim começam lentamente a executar um programa dentro da concepção racista do Estado.” (HITLER, 1925. p.231)

 

O que se buscou demonstrar, foi que o racismo que opera nos Estados Unidos é uma construção indissociável da edificação do país. O racismo nos Estados Unidos não pode ser negado, como de fato nunca foi. Fator que configura diferença crucial a quem quer que se atreva a analogias. A luta por inclusão e revogação de leis racistas que davam ao racismo o caráter de coisa de direito é também parte indelével da história recente do país. Os movimentos por direitos civis iniciados na década de 60 do século passado são o demonstrativo mais evidente de tal singularidade. Impossível de se estabelecer parâmetros com qualquer outro caso de racismo vigente em qualquer outro país. Em uma forma de sociabilidade onde a manifestação do racismo é explicita, a confrontação ao racismo se deu de forma explicita. Contra um racismo visceral que incluiu até mesmo o enforcamento e o linchamento de negros, desenvolveu-se uma forma radical e visceral de combate ao racismo. O despertar da consciência desencadeado pelas lutas por direitos civis radicalizou a prática. Cientes de que o combate ao racismo está umbilicalmente ligado ao combate ao capitalismo, o pensamento marxista foi o instrumento de mobilização do Partido dos Panteras Negras, variação e gradação de aspecto exclusivas aos Estados Unidos, mas este é assunto para outra ocasião. 


Continua...

Imagem: Angela Davis discursa atrás de uma proteção de vidro à prova de balas, no Madison Square Garden, na cidade de Nova Iorque, no dia 29 de junho de 1972 

Eudes Cardozo é professor de História, militante Comunista e pai do Pablo e do Arthur

REFERÊNCIAS: 

Gaiman, Neil, 2010. American Gods; São Paulo: Conrad do Brasil

Holanda, Sérgio Buarque de, 1902-1982. Visão do Paraíso: os motivos edênicos no descobrimento e colonização do Brasil / Sérgio Buarque de Holanda — São Paulo: Companhia das Letras, 2010

LINEBAUGH, Peter; REDIKER, Marcus. A hidra de muitas cabeças: marinheiros, escravos, plebeus e a história oculta do Atlântico Revolucionário. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. 440p.

Marx, Karl. O Capital – Crítica da Economia Política. 1985. São Paulo, Nova Cultural

Reis, J. (1996). Quilombos e revoltas escravas no Brasil. Revista USP, (28), 14-39.

Schwartz, Stuart B. Segredos Internos: Engenhos e escravos na sociedade colonial, 1550-1835; trad. Laura Teixeira Motta. – São Paulo: Companhia Das Letras, 1988.