Dos cuidados e da necessidade de se derrubar mitos
(Por Eudes Cardozo)
Arte Banksy
Na esteira da onda de protestos contra a morte de George Floyd, exterminado covardemente pela covarde polícia norte americana. Tem ganhado força uma nova modalidade de subversão, ação direta e combate ao racismo vigente em escala em global, a qual seja: a derrubada de estátuas e monumentos que remetam à escravagistas e colonizadores. Movimento mais do que legitimo; necessário. Forte sintoma de pane nas engrenagens capitalistas.
O simbolismo ambíguo que a memória das bandeiras vicentinas evocou sempre pesou também contra o período colonial, a disputa entre a lenda negra das bandeiras, revestida de farta documentação oficial dentre as quais figuram correspondências com queixas de jesuítas e governadores de capitanias remetidas à coroa; e a lenda dourada só se encerrou nos anos 30 do século passado com a vitória da segunda e o quase apagamento da primeira. A reabilitação do bandeirantismo e a atribuição de heroísmo aos seus feitos encontra seu maior expoente na História Geral das Bandeiras Paulistas de Afonso d'Escragnolle Taunay, os onze volumes da epopeia bandeirante são basicamente o grosso caldo da mitologia ainda vigente sobre o tema, e adotada por “historiografia” oficial. Tal escolha era importante para a elite paulista, pois ofertava um aporte histórico para sua pretensa e, também, fabricada superioridade com relação ao resto do país, e era também conveniente para o passado de extermínio, saque e estupros do período colonial.
Nos dois séculos de quase completo isolamento da metrópole e também do resto da colônia, os paulistas assimilaram práticas e hábitos indígenas, como o mel de cabaça e o uso e abertura de picadas, fundamentais para as incursões mata adentro. Estar “de viés” para a coroa implicou a esta etapa inglória da colonização em relegar parte dos colonos ao desterro, estes, de seu isolamento involuntário, aproximam-se mesmo que a contragosto dos povos já residentes no território a ser conquistado, como observa Sergio Buarque de Holanda: “... E estavam certamente nessa incorporação necessária de numerosos traços da vida do gentio, enquanto não fosse possível uma comunidade civil coesa e bem composta segundo os moldes europeus.” (HOLANDA, 1995). O contato (consanguíneo em muitos casos) dos paulistas com os nativos possibilitou além da expansão territorial a constituição de milícias compostas por centenas de quadros indígenas e por vezes tribos inteiras, tais milícias faziam as vezes de tropas de contenção de revoltas e recaptura de escravos em socorro à coroa, como na célebre intervenção de Domingos Jorge Velho contra Palmares em janeiro de 1694, após sucessivas derrotas das tropas locais. Detalhe digno de nota é que os colonos que contrataram os serviços do Bandeirante o consideravam um “selvagem” em correspondências oficiais destinadas à corte. A utilização dos peculiares e nada convencionais atributos dos bandeirantes serviu aos interesses portugueses por mais de uma vez e em outras salvou e resguardou o improvável e improvisado projeto colonial. Sendo os bandeirantes tão somente instrumentos e agentes de vontades e interesses da metrópole.
Eudes Cardozo é professor de História, militante Comunista e pai do Pablo e do Arthur
Referências:
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Caminhos e fronteiras. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
LONDOÑO, Fernando Torres. A Outra Família: Concubinato, Igreja e Escândalo Na Colônia. Edições Loyola - São Paulo, 1999.
TAUNAY, Affonso d’E. História Geral das Bandeiras Paulistas. S.l. S.n., s.d. [1935]. 3 vv.
[1] Originalmente os Mamelucos eram tropas de cativos turcos anexadas às tropas muçulmanas desde 1250 e que chegaram a fundar um sultanato que conquistou e regeu o Egito por volta de 1760. Há uma corrente historiográfica que atribui o uso do termo “mameluco” adotado pelos portugueses para se referir aos paulistas devido à destreza e habilidade das tropas milicianas comandadas por bandeirantes. Outra corrente, com a qual o autor compactua, diz que o tom da pele derivado da miscigenação entre português e nativo resultou na adoção do termo, denotando também evidente preconceito nas tratativas raciais do Brasil Colônia.