Dos cuidados e da necessidade de se derrubar mitos

(Por Eudes Cardozo)

Hugo Albuquerque

 

Arte Banksy

Na esteira da onda de protestos contra a morte de George Floyd, exterminado covardemente pela covarde polícia norte americana. Tem ganhado força uma nova modalidade de subversão, ação direta e combate ao racismo vigente em escala em global, a qual seja: a derrubada de estátuas e monumentos que remetam à escravagistas e colonizadores. Movimento mais do que legitimo; necessário. Forte sintoma de pane nas engrenagens capitalistas.

O caso brasileiro, porém, é sempre um tanto mais complexo, e enquanto as ameaças ao mármore por aqui não se concretizam e repousam ainda em banho maria nas time lines da vida, cabe aqui dois dedos de reflexão sobre os fantasmas de nosso passado não tão distante. História é disputa, uma guerra travada pelos sentidos da memória, geralmente são as forças da dominação quem impõe ao conjunto da sociedade sua visão de mundo e o valor incontestável de seus “mitos” constitutivos. Os Bandeirantes são o maior exemplo disso. 




O simbolismo ambíguo que a memória das bandeiras vicentinas evocou sempre pesou também contra o período colonial, a disputa entre a lenda negra das bandeiras, revestida de farta documentação oficial dentre as quais figuram correspondências com queixas de jesuítas e governadores de capitanias remetidas à coroa; e a lenda dourada só se encerrou nos anos 30 do século passado com a vitória da segunda e o quase apagamento da primeira. A reabilitação do bandeirantismo e a atribuição de heroísmo aos seus feitos encontra seu maior expoente na História Geral das Bandeiras Paulistas de Afonso d'Escragnolle Taunay, os onze volumes da epopeia bandeirante são basicamente o grosso caldo da mitologia ainda vigente sobre o tema, e adotada por “historiografia” oficial. Tal escolha era importante para a elite paulista, pois ofertava um aporte histórico para sua pretensa e, também, fabricada superioridade com relação ao resto do país, e era também conveniente para o passado de extermínio, saque e estupros do período colonial.

A barbárie bandeirante decorre da barbárie colonial. Não se pode meramente atirar ao fundo dos cadáveres de nossos rios os bustos de Anhanguera sem que se faça um balanço das responsabilidades, correndo o risco de que o ato simbólico da rebeldia apague o ato político da revolta. No rastro de sangue deixado pelas Entradas bandeirantes, há pegadas portuguesas, há a marca indelével da violação colonial.

Excluído pela metrópole desde sempre o paulista original sequer a língua portuguesa da corte falava; falavam o "geral" de onde deriva o "muié", o "cuié", o "coiê"e o "meió" comuns no interior paulista e estendidos aos mineiros e goianos. Essa distância linguística demonstra também a distância social entre elite colonial (situada no Nordeste) e metrópole, e os mamelucos[1] alocados ao sul, demonstrativo também da proximidade dos paulistas com os povos originais. Do sucesso na empreita escravagista de nativos a qual os paulistas foram empurrados, advém a melhora das relações e o encurtamento da distância entre metrópole e a Capitânia de São Vicente. Portugal, notando a possibilidade de lucro flexibilizou "leis" que autorizaram a captura de “negros da terra” e a "guerra justa" contra os gentios hostis, ignorou o casamento de colonos pré existente na metrópole em conivência com o concubinato e o adultério na Colônia (LONDOÑO, 1999), sendo cumplice junto à igreja do rapto, estupro e poligamia. A dinâmica simbiótica estabelecida nas relações entre os paulistas e os povos originários foi o instrumento utilizado por Portugal para dobrar Tordesilhas.

Nos dois séculos de quase completo isolamento da metrópole e também do resto da colônia, os paulistas assimilaram práticas e hábitos indígenas, como o mel de cabaça e o uso e abertura de picadas, fundamentais para as incursões mata adentro. Estar “de viés” para a coroa implicou a esta etapa inglória da colonização em relegar parte dos colonos ao desterro, estes, de seu isolamento involuntário, aproximam-se mesmo que a contragosto dos povos já residentes no território a ser conquistado, como observa Sergio Buarque de Holanda: “... E estavam certamente nessa incorporação necessária de numerosos traços da vida do gentio, enquanto não fosse possível uma comunidade civil coesa e bem composta segundo os moldes europeus.” (HOLANDA, 1995). O contato (consanguíneo em muitos casos) dos paulistas com os nativos possibilitou além da expansão territorial a constituição de milícias compostas por centenas de quadros indígenas e por vezes tribos inteiras, tais milícias faziam as vezes de tropas de contenção de revoltas e recaptura de escravos em socorro à coroa, como na célebre intervenção de Domingos Jorge Velho contra Palmares em janeiro de 1694, após sucessivas derrotas das tropas locais. Detalhe digno de nota é que os colonos que contrataram os serviços do Bandeirante o consideravam um “selvagem” em correspondências oficiais destinadas à corte. A utilização dos peculiares e nada convencionais atributos dos bandeirantes serviu aos interesses portugueses por mais de uma vez e em outras salvou e resguardou o improvável e improvisado projeto colonial. Sendo os bandeirantes tão somente instrumentos e agentes de vontades e interesses da metrópole.

A descoberta do ouro após nova incursão sangrenta no 1690 mais uma vez alteraria o isolamento e o trato destinado aos paulistas, iniciando um novo ciclo de devassa, destruição e extração da riqueza mineral do país. São Paulo, a antes desprezada e isolada boca do sertão torna-se a menina dos olhos da coroa já na entrada do 1700. Ampliando o fluxo de escravos, ampliando a mortandade de indígenas, estendendo a devastação da mata nativa. O que se buscou nessas poucas linhas não foi a isenção de responsabilidade ou a absolvição dos muitos crimes hediondos perpetrados pelos bandeirantes, por vezes contra seus próprios familiares. O que se pretende é que a crítica esvaziada de critério analítico não seja cumplice da absolvição do processo colonial que encontrou nas mãos dos bandeirantes a via para realização de seus projetos escusos e até hoje impunes. Ao fundo dos rios com todos os mitos e que os bandeirantes não afundem sem arrastar o peso de seus patrões.

Eudes Cardozo é professor de História, militante Comunista e pai do Pablo e do Arthur 




Referências:

 

HOLANDA, Sérgio Buarque de. Caminhos e fronteiras. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

 

LONDOÑO, Fernando Torres. A Outra Família: Concubinato, Igreja e Escândalo Na Colônia. Edições Loyola - São Paulo, 1999.

 

TAUNAY, Affonso d’E. História Geral das Bandeiras Paulistas. S.l. S.n., s.d. [1935]. 3 vv.
[1]
Originalmente os Mamelucos eram tropas de cativos turcos anexadas às tropas muçulmanas desde 1250 e que chegaram a fundar um sultanato que conquistou e regeu o Egito por volta de 1760. Há uma corrente historiográfica que atribui o uso do termo “mameluco” adotado pelos portugueses para se referir aos paulistas devido à destreza e habilidade das tropas milicianas comandadas por bandeirantes. Outra corrente, com a qual o autor compactua, diz que o tom da pele derivado da miscigenação entre português e nativo resultou na adoção do termo, denotando também evidente preconceito nas tratativas raciais do Brasil Colônia.