Amor, mulheres e violência doméstica em tempos de pandemia

(Por Duda Sansão)

Duda Sansão

Ao longo dos últimos noventa dias, nós fomos tirados do lugar de conforto. Enfrentamos uma pandemia sob os desmandos de um governo – propositalmente – desorganizado na contenção dos impactos do COVID-19. Com as consequentes reorganizações particulares e gerais, fomos jogados em um contexto de fragilidade pessoal, marcado pela intensificação de contradições individuais e coletivas.

No campo das relações afetivas, entre extremos, encontramos relatos da dureza da solidão e tentativas de conexão apesar do isolamento social. Por outro lado, deparamo com o desgaste de sujeitos que encontraram na quarentena a dificuldade de suportar o outro ou de sustentar narrativas inconsistentes, antes escondidas sob as tarefas do cotidiano. Em termos objetivos, o amor nos faz falta neste momento. Seja para aqueles que idealizam relações impedidas hoje ou para aqueles que não encontram motivos para refazer diariamente os laços de afeto.

Quando falamos sobre amor em tempos de pandemia, existem considerações específicas que tangem a vida das mulheres, as quais encontram, frequentemente, nas relações amorosas heteronormativas um jugo que demonstra seu lugar social. As referências literárias e cinematográficas hegemônicas destinam as mulheres para a casa, o espaço privado, o cuidado, a delicadeza e a calmaria, para relacionamentos que funcionam como um suporte ao homem que merece apoio para desenvolver todas as potencialidades possíveis.

Esse ideal feminino não encontra espaço prático para as mulheres da classe trabalhadora, que lutam diariamente pela própria sobrevivência. Isso também não significa que a falta de espaço impeça as idealizações de boas histórias de amor, como todas as que são contadas pelas novelas. Para as mulheres, ser amada e a possibilidade de amar parece – em alguma medida – validar sua existência. E a busca por essa validação gera uma fragilidade que pode implicar em relações abusivas e violentas, sob o custo de viver o felizes para sempre arduamente desejado.

Ao relacionar o aumento das contradições nas relações afetivas durante o isolamento social e a possibilidade das mulheres estarem em relacionamentos abusivos, encontramos um quadro onde a violência de gênero pode ser intensificada. O Fórum Brasileiro de Segurança Pública emitiu uma nota técnica em 16 de abril de 2020 com dados sobre a violência doméstica durante a pandemia de COVID-19. Em São Paulo, os atendimentos de violência doméstica pela Polícia Militar cresceram em 44,9% ao comparar dados de março de 2019 e março de 2020, assim como o número de feminicídios.

Apesar do aumento de atendimentos, o isolamento impactou na diminuição das denúncias, que demandam deslocamento e saídas da casa que se mostram injustificadas aos agressores. Sabemos que os dados preocupantes de violência de gênero são anteriores ao período da pandemia, contudo há um impacto ligado à quarentena tanto na ocorrência de novas violências ou no aumento daquelas que já aconteciam. A partir dessa constatação, devemos avaliar garantias mais urgentes, mas também nos questionar como a construção do amor atravessa a violência doméstica.

Em medidas mais imediatas, é necessário organizar articulações políticas efetivas em níveis locais com suporte e assistência para que essas mulheres não sejam apenas estatísticas que gerem políticas públicas esvaziadas. Nos debates cotidianos, devemos nos perguntar o quanto a não ocupação de espaços públicos, coletivos e sociais podem encaminhar mulheres para um local de silenciamento e abuso no interior dos relacionamentos afetivos, que parecem ser definidos por uma conquista árdua e um sofrimento recorrente.

Devemos nos questionar sobre o ideal de amor que é fortalecido e vendido sob a lógica do capital que encaminha mulheres para esse contexto de violência doméstica. Importa-nos pontuar que as mulheres trabalhadoras enfrentam esse quadro enquanto estão submetidas a outras questões referentes a sua condição de classe, e muita das vezes, de raça.

No horizonte da sociedade que queremos construir, não nos bastam medidas jurídicas ou políticas estatais para o combate à violência doméstica. Não negamos a importância desses instrumentos no contexto atual, mas destacamos a insuficiência dessas ferramentas para conduzir as mulheres à emancipação humana. Dar novos sentidos ao amor pode ser um caminho a ser construído coletivamente, com a superação das idealizações afetivas que levam a um lugar de subjugação.

Se os relacionamentos afetivos impactam a existência das mulheres, temos como tarefa política retirar o amor do lugar das histórias bonitas contadas em livros, que quando reproduzidas na vida real podem ter um final trágico e violento. Em uma carta escrita para a juventude operária em 1921, Alexandra Kollontai já nos provocava sobre “que lugar corresponde ao amor na ideologia da classe trabalhadora?”. Como poderá ser o amor que sirva aos interesses dos proletários? Como poderemos estabelecer elos baseados em solidariedade e fraternidade que nos tirem das idealizações burguesas que condenam muitas mulheres a relacionamentos violentos?

Não negamos o amor, mas reconhecemos a força existente para além de beijos e afagos, como um instrumento a ser utilizado para ação e união no interior da luta proletária e na vida cotidiana. Não é sobre categorizar o amor de modo ortodoxo, mas pensar em como ele pode ser ressignificado e, assim, produzir interlocuções concretas que nos encaminhem para superação da violência de gênero e, em termos mais amplos, para a suplantação do patriarcado e das imposições do capital para a classe trabalhadora.

Duda Sansão, 23, é graduada em Direito pela Universidade do Estado de Minas Gerais e mestranda em Direito pela UNESP, pesquisa a questão de gênero. 


Nota: A imagem do post é composta pela fotografia da militante Ana Maria Nacinovic sob a obra “Umas facadinhas de nada” (1935), de Frida Kahlo. Ana Maria militou pela Aliança Libertadora Nacional (ALN) durante o período da ditadura civil-militar e foi morta pela repressão em 14 de junho de 1972, há exatos quarenta e oito anos.

Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Violência doméstica durante a pandemia de COVID-19. Nota Técnica. Abril de 2020. Disponível em: <http://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2018/05/violencia-domestica-covid-19-v3.pdf>.

KOLLONTAI, Alexandra. A nova mulher e a moral sexual. 2. ed. – São Paulo: Expressão Popular, 2011.