A promessa cumprida de Bolsonaro: Trinta mil mortes

(Por Fabio Otheguy Fernandes e Hugo Albuquerque)

Hugo Albuquerque

Através do voto você não vai mudar nada nesse país, tá? Nada, absolutamente nada. Isso só vai mudar, infelizmente, quando um dia nós partirmos para uma guerra civil aqui dentro. E fazendo um trabalho que o regime militar não fez: matando uns 30 mil... Matando. Se vai morrer alguns inocentes, tudo bem.

Jair Bolsonaro

Bolsonaro parece uma sujeito que cumpre suas promessas. Passamos dos 30 mil mortos oficiais por coronavírus nesta terça-feira, 02 de junho de 2020: e essa cifra remete à fala acima, célebre, em uma entrevista de 1999 do então deputado federal Bolsonaro, ali visto como um bufão “inofensivo”, dizendo o que a Ditadura Militar (1964-1985) deveria ter feito para se manter no poder no final dos anos 1970. 30 mil mortes de brasileiros como nós ou nossos entes queridos. 30 mil mortes que acabaram acontecendo.

Lá, o General Geisel recuou, cedeu o poder de forma controlada e preferiu entregar os anéis a perder os dedos, deixando os militares na confortável, e ilegítima, posição de tutores da democracia nascente. Mas isso não era suficiente para Bolsonaro e sua turma, que se aproveitando da loucura que tomou a Nova República, voltaram ao poder.

Antes que os muito espertos e os nada espertos digam que “Bolsonaro não tem culpa”, não custa lembrar que as 30 mil mortes equivalem, aproximadamente, a 60 vezes mais mortos do que na Argentina, um país cinco vezes menor do que o nosso, o que faz com que nossa taxa de mortalidade seja 12 vezes maior do que nossa vizinha, uma diferença que fala por si. Dezenas de milhares dessas mortes poderiam ter sido evitadas.

E aqui não se fala sobre as vazias bravatas de campanha, mas de suas bandeiras de longo prazo, dos seus compromissos firmados ao longo de toda uma vida. De tanto os brasileiros serem levados a crer que deveriam eleger um político que “cumpre promessas”, eles acabaram encontrando um, mas não esperavam que fossem se arrepender do seu pedido. Em política o problema está na qualidade da promessa, para começo de conversa.

A famosa manifestação parafraseada acima, datada ainda de meados dos anos 1990, nos mostra duas dessas promessas que Bolsonaro lutou bravamente para cumprir desde que tornou-se presidente. A primeira, de colocar em prática sua guerra civil, ainda não foi atingida. A segunda, infelizmente, foi cumprida hoje, sem precisar dar um tiro.

Mas estas 30 mil mortes não são apenas fruto do descaso com a vida que marcará com sangue e dor esta tresloucada e sanguinária aventura na qual o país embarcou ao eleger um homicida perverso como Jair Bolsonaro. É, acima de tudo -- e isso pode ser identificado através da análise do discurso bolsonarista desde o começo do cataclisma pandêmico -- fruto de uma ideologia cruel e que sempre buscou legitimar algumas das maiores atrocidades da história da humanidade: a eugenia.

É disso que se trata o descaso de Bolsonaro com a vida dos mais pobres, dos idosos e de todos aqueles que compõe os grupos mais vulneráveis ao coronavírus. Para a distorcida ética da extrema-direita neofascista contemporânea, a pandemia faz o papel de eliminar os fracos, os covardes e inábeis que não estão aptos à atividade econômica e precisam esconder-se em suas casas. 

A política econômica de Paulo Guedes não foge à essa regra, mas se apresenta como síntese máxima dela. Sistematizada em torno da manutenção de nossas colossais desigualdades e na permissividade sádica aos mais ricos e poderosos, o projeto ultraliberal levado a cabo por este governo é um aprofundamento daquilo que já vinha sendo experimentado ao longo do governo de Michel Temer. 

Isso representa o que de mais arcaico e cruel pode ser encontrado em termos de ciência econômica. A crueldade eugenista desse modelo encontra expressão quase perfeita nas palavras de uma das das conselheiras mais próximas de Paulo Guedes, a economista Solange Vieira. 

Segundo a Reuters, a auxiliar afirmou, em reunião que discutia os impactos da crise de saúde pública, que “é bom que as mortes se concentram entre os velhos” uma vez que “isso melhorará nossa performance econômica e reduzirá o nosso déficit previdenciário”. 

São os louros da eliminação dos fracos e desvalidos, uma parte tão importante do projeto encampado por esse governo. Uma promessa que Bolsonaro fez 30 anos atrás e que, hoje, foi dolorosamente cumprida.

Mas o plano facínora de Bolsonaro e aqueles que o cercam e que nele creem não termina com essas 30 mil vidas ceifadas. Vai muito além disso. Vai até o limite do desapreço pela vida dos mais vulneráveis para que morrem muitos mais. Mas vai para muito além do que pode fazer o coronavírus. 

Como sabemos, muitas vezes, a vulnerabilidade e a fraqueza não é natural. Um idoso tem limitações objetivas e naturais, as quais podem ser maiores ou menores de acordo com seus recursos: pessoas morrem em média antes dos 60 anos na periferia de São Paulo, mas vivem em torno dos 80 anos nos bairros ricos.

O mesmo pode ser visto no fato de que a taxa de mortalidade por coronavírus, no Brasil, é maior do que a média mundial, mas a média brasileira é uma média dos Brasis: por isso há mais mortos na periferia de São Paulo, embora haja mais ricos contaminados, olhando para um bairro como o Morumbi.

Quem decide quem é forte e fraco, antes de todo mundo, é o governo. Depois, ele age cinicamente como se estivesse deixando a natureza operar. A única natureza operando, contudo, é a política, que é parte indelével da nossa natureza como já anotava Aristóteles.

Bolsonaro não quer governar, ele quer governar em outro regime. Se setores de “direita democrática” que permitiram que ele chegasse lá queriam que ele reinasse, mas não governasse, tampouco Bolsonaro deseja reinar: ele quer governar sob outro regime de coisas, um regime que lhe assegure, e aos seus familiares, mais poder e segurança. É o fundamento secreto de qualquer fascismo: o espírito da chefia bárbara.

Esse projeto é visto como um instrumento válido da elite econômica do Brasil, ou algo que não é digno de censura ou deposição. Isso diz mais sobre a elite econômica brasileira do que as trivialidades mortíferas de Bolsonaro. 

O projeto eugenista e distópico não pode contar apenas com as mortes da pandemia e, por isso, precisa de uma mudança do regime e de uma matança generalizada. E isso só será possível cumprindo a sua segunda promessa, que é a de uma sanguinolenta guerra civil, a qual é, igualmente, outra dissimulação: antes de tudo uma guerra de agressão assimétrica contra o povo. 

É nesse sentido que o bolsonarismo tanto luta pelo armamento da população para enfrentar prefeitos e governadores, como ele mesmo disse na fatídica reunião ministerial. É nesse sentido que o bolsonarismo infla cada vez mais a sua milícia truculenta e sanguinária. 

Assim, o bolsonarismo flerta cada vez mais com o autoritarismo que tanto nos assombrou e assombra, enchendo o seu ministério de generais ao mesmo tempo em que parece coordenar polícias e milícias militares cada vez mais violentas e implacáveis contra aqueles que não aceitam a sujeição ao que há de mais macabro na política e na vida. 

Não fomos capazes de impedir Bolsonaro de cumprir a sua cadavérica promessa de ceifar 30 mil vidas. Mas devemos, em nome de cada um destes mortos pelo descaso e dos muitos que dolorosamente virão nos próximos dias e semanas pela mesma razão, nos erguer e embarcar em um feroz enfrentamento ao seu projeto de destruição democrática e de guerra cívil que parece cada vez mais próximo. 

Hugo Albuquerque, 32, é advogado, mestre em direito constitucional pela PUC-SP, onde também se graduou, membro do Instituto Humanidade, Direitos e Democracia -- IHUDD e editor da Autonomia Literária.

Fabio Otheguy Fernandes, 31, é economista, mestre em Economia pela Universidade Federal do ABC e doutorando em Ciências Econômicas pela Universidade Estadual de Campinas. É membro do Instituto Humanidade, Direitos e Democracia -- IHUDD.