“A Natureza a Infraestrutura da Vida”
POR JAMES HERMÍNIO PORTO, GREGORIO GANANIAN E HUGO ALBUQUERQUE
Em entrevista ainda inédita de Zé Celso Martinez Corrêa, que nos deixou há pouco, ele falou sobre ecologia, revolução, a luta contra a extrema direita e a necessidade de uma frente unida para a democracia.
Em 06 de julho de 2023, se foi José Celso Martinez Corrêa, um dos maiores artistas brasileiros, aos 86 anos. Figura iconoclasta, radical e inovadora, ele transformou o Teat(r)o Oficina em um farol mundial – incrustada no coração de São Paulo, o Bixiga. Para o choque de todos, Zé Celso transmutou-se em decorrência de um trágico incêndio em seu apartamento, se recusando aos clichês mesmo na hora de sua partida.
Nos fins de 2020, vivíamos o pesadelo da pandemia e um sonho que não podia ser confinado: uma publicação antropofágica chamada Kangaceyro Quilombola, realizada pelo Instituto Humanidade, Direitos e Democracia (IHUDD). Cada edição teria nomes de peso que que dariam força para o jornal. E como primeiro convidado, sonhamos com o onírico bruxo Zé Celso. Generoso do jeito que ele era, não precisamos invocar muito para que ele manifestasse sua palavra entre nós: um dramaturgo, um cineasta e um editor.
Rascunhamos perguntas sólidas, rebuscadas e inteligentes, ingenuamente achando que conseguiríamos conduzir a entrevista com o Zé Celso – exatamente como alguém que tenta mudar o curso de um poderoso rio com algumas pequenas pedras. Fomos arrastados por sua correnteza, mas não sem luta, não sem uma tentativa de conter seu fluxo de pensamento em nossas perguntas.
Zé Celso, como sempre, não deu respostas óbvias, curtas, restritas aos temas propostos. E se não prestássemos atenção, acharíamos que ele não estava dando atenção às perguntas. Dificilmente se conhece alguém tão atento quanto ele, que era muito mais interessado pela pessoa que pergunta do quê com o que era perguntado, a ponto dele inverter a ordem lógica de uma entrevista e entrevistar o entrevistador.
O que Zé nos entregou foram reflexões brilhantes que só alguém vivo, vívido e vivificante como ele poderia ousar provocar. Generoso como era, trouxe a nós seu brilho sem que fôssemos capazes de lhe jogar qualquer luz em suas ideias. Entrevistar o Zé era uma luta em que só ganharíamos se nos rendêssemos. E nos rendemos, e de mãos levantadas fomos puxados por ele ao alto, ao ato.
Pelo mesmo Zé que realizou uma encenação visceral de Os Sertões de Euclides da Cunha, seja no palco ou na re-existência no bairro do Bixiga contra a voracidade especulatória do magnata, seu “adversário sagrado”, Silvio Santos, na famosa disputa sobre as extensões do teat(r)o – poeta da arte vida.
O Kangaceyro foi capturado e segue trancado no mundo dos planos adiados. Mas nunca esqueceremos de quando invadimos o terreno (não como tentou o “Homem do Baú") do “encenador e dramaturgo mais importante para qualquer geração”, como disse há pouco Aimar Labaki, e tentamos lhe roubar seu precioso tempo.
O Zé não poderia ser roubado: sua vida era a invenção continua de uma coletividade e do comum, socializando o extraordinário. Por muito tempo esta entrevista ficou no baú das memórias de tempos de trevas, refém dos planos adiados – embora tenhamos divulgado parte da conversa, conforme Zé nos pediu, a respeito da necessidade de união em torno de Guilherme Boulos, nas eleições municipais de São Paulo naquele ano.
Mas hoje, esta conversa está livre aqui, numa homenagem ao ser mais radical do teatro no Brasil e no mundo de hoje. O contexto dela pode até ser outro, mas o Zé Celso é eterno: Zé devorou a vida para encenar na História.
JH
Por um tempo eu estava no Direito estudando dramaturgia na SP escola de teatro, a vida me trouxe de volta pro Direito, mas aí fica uma dívida no meu coração.
ZC
É realmente nessa época que dá pra jogar o que é difícil, mas vai fazer teatro. É mais difícil, só que eu acho que dá para começar a se manifestar na rua como fizeram os americanos negros e não negros. Depois do george Floyd, ficar passeando, não sei, eu acho que a única maneira de transformar essas coisas eu acho que eu é voltar a se manifestar simplesmente como fizeram os americanos negros mas muitos brancos também. Passear pela cidade com máscara e tudo, com multidões e dizendo algumas coisas e tal. Não precisa dizer muito não.
GG -
Eu sou Gregório um beijo pra você tá desastres juntos é eu trabalho com cinema viu Zé até a gente fez um filme que a gente filmou no terreiro do terreno da oficina
ZC
qual filme?
GG
Inaudito
ZC
Como é isso desse filme?
GG
Eu sou diretor é com Lanny Gordin a gente foi comer igual de ir pra China eu tenho uma espécie de…
ZC
…Aquele guitarrista…Ele tá vivo ?
GG
É, ele nasceu na China e eu fui com ele pra China, Zé.
ZC
Ele ficou na China ?
GG -
A gente foi juntos da China para filmar, entendeu? O filme é quase uma ficção científica
ZC
Ele voltou já ?
GG
Voltou a gente foi juntos, eu fiquei lá
GG
O Lanny é uma figura, assim, maravilhosa e ir com ele à China… ele era tratado como um mestre zen, sabe? Ah, é um filme então podemos esquecer relacionamento do Lanny na China, ele toca com uma dançarina chinesa…
ZC
Tem muito mestre zen na China?
GG
Olha, isso é só o fato de o pessoal beber tanto chá e tem uma relação com o corpo…. é a China, a gente fica com uma imagem da China de um monte de gente sem corpo, sem sensualidade. Ao contrário, fui pra China fiquei espantado… uma coisa…todas as praças com tai chi chuan as pessoas, muito verde, muito verde. Tem uma sensibilidade, aquela coisa taoísta, aquilo está presente neles…mas eu vou te passar o filme depois gostaria que você visse, a gente filmando a gente vai formando um terreno atrás da Oficina.
ZC
Uma dança ?
GG
É uma dança uma, dança em si, na montanha do terreno. São Paulo, assim, noturna maravilhosa, uma dança em cima da montanha do Oficina.
ZC
Dia 30 de novembro, vai fazer 40 anos dessa luta sensacional onde eu aprendi o que é o capitalismo, o que está acontecendo realmente com as coisas. Eu tive um adversário sagrado como dizem os antropófagos, a antropofagia.
Ele me inspirou em todas as peças, foi meu grande antagonista teatral, é muito bom contracenar com o sujeito é que tem tanta grana, é da televisão e é popular aí, você contracena com uma realidade que você não vive. Eu não vivo essa realidade, eu não vou para Miami, nada a ver com nada, mas essa luta inspira.
E 40 anos, vai fazer 40 anos que ele não consegue fazer nada lá mais é a luta continua. O projeto do teatro parque Rio BIxiga foi aprovado duas vezes na câmara de vereadores. O único opositor foi o Holiday, conhece o Holiday?. Quem assinou contra também duas vezes foi o próprio presidente da Câmara Municipal, que é o neto do Romeu Tuma, delegado do Dops…Agora tem de baixar o decreto. Todo um trabalho de fazer. Eu gostaria muito, inclusive, conversar com Covas, porque é jovem e está doente. Ele tem um contato diferente com a vida. Ele fez esse Tuminha vetar, mas era antes da pandemia. Depois da pandemia ele é um ser humano é impossível ele não estar sensibilizado. Que a primeira a primeira versão da interdição do veto foi feito sem dar menor conhecimento sem olhar sequer. Com a imagem muito bonita, não sei se vocês olharam isso, tem o rio Bixiga, umas árvores... Mais bonita, nem olhou isso. Em São Paulo é super necessário um parque sobretudo depois da pandemia, é importantíssimo. O Bixiga não tem parque nenhum, se for de lá você sabe disso. Tem uma pracinha com uma árvore, mas mesmo assim, parque como vai ser lá com um Rio. Tem um coro de arquitetos, o Massafumi, um japonês se especializou no rio, a quatro meros do chão. O Rio vai vir à tona. Abre para a possibilidade de uma outra hidrografia. São Paulo tem que se tocar agora com o que houve.
O que aconteceu com o coronavírus é uma coisa do abuso excessivo da natureza que produziu uma espécie de espasmo venenoso, matou muita gente. Nós todos estamos vivendo uma situação horrível porque eu sou cardíaco e estou de quarentena, centena. Centenas de dias aqui. Eu sou cardíaco e tenho 83 anos, então sou grupo risco, se não estava passeando aí. Fazendo um protesto. Eu acho que vocês jovens devem fazer isso, a gente deve ir pra rua. Não daquela maneira tudos juntos, mas, nesse sentido copiar o que tem de melhor nos Estados Unidos, que foi a revolução que os negros fizeram lá.
A revolução do movimento negro que continua lutando contra o racismo bravo. Mas essa maneira de os brancos passear junto durante academia. Foi uma coisa. Uma visão muito boa. É uma coisa que a gente pode realmente fazer. Igual aos Estados Unidos, foi uma coisa muito clara porque relativa à pandemia. Não é? Não dá para todo mundo juntar a pé, mas passear com distância é possível, vocês que são jovens, podiam. Vamos fazer uma manifestação para que isso aconteça. Uma grande manifestação. Um grande passeio, sem dizer nada, de um lado para outro. Dizendo talvez só o essencial, talvez o fora Bolsonaro. Porque agora está acontecendo uma coisa... Tomara que o Trump, ele vai perder. Se ele perde, o Bolsonaro está fudido…
HA
…Aqui muda…
ZC
A coisa foi difícil porque aconteceu em uma pandemia, ninguém podia se manifestar na rua, teve até alguns atos maravilhosos, de jogadores de futebol. Protestos do povo insatisfeito... É preciso agora aproveitar esse momento, sobretudo com a queda do Trump. Que dia é a eleição? 03 de novembro?
HA
A eleição acho que é 3 de novembro, é no começo de novembro
ZC
A aparência dele(Trump) ontem era ruim. Não sei porque faz isso, ele está respirando muito mal. Ele é louco. O último debate dele foi horrível, insuportável. Essa coisa que não dá condições do outro falar, nem do mediador, nada. É um homem impossível
GG
Um canalha
ZC
Depois do debate e depois do corona, ele caiu ainda mais. Um momento no Brasil de aproveitar essa oportunidade e sair na rua andando.
HA
Sou hugo, advogado e editor. Aqui estamos pela iniciativa do Instituto do IHUUD. Que une política, arte, experimentação, luta por direitos. Estamos no território do Bixiga, a gente que editou o Marx Selvagem com o amigo Jean.
ZC
Duas vezes, está em que edição?
HA
Está na quarta
JH
O nome desse nosso projeto de jornal é Kangaceyro Quilombola, a ideia é resgatar aproveitar essa potência da antropofagia, o que foi a tropicália, o hip-hop hoje das periferias... Fazer algo, um projeto de esquerda que seja negando o colonialismo. Uma perspectiva de aproveitar do marxismo e de outros saberes, mas desse jeito pela antropofagia.
ZC
Nós estamos no Hemisfério Sul. O Oswald Andrade tinha essa visão e, depois, com a minha geração, tínhamos também via que aqui é o Hemisfério Sul: Celso Furtado, João Goulart… Lina Bo Bardi, uma geração brilhante que achava que aqui, a partir do Hemisfério Sul, o Brasil tinha de negociar com a China, Índia, África. Era uma Revolução Tricontinental. Cuba se fudeu porque não conseguiu fazer isso.
JH
Continuamos acreditando nisso…
ZC
Mas é claro que é preciso fazer acordo com o mundo inteiro, inclusive com os Estados Unidos. O Brasil é um país aberto, não faz sentido acabar com nada. Na realpolitik, eles são obrigados a transar com o mundo inteiro, mas o mundo inteiro está muito descontente. O que acontece aqui é de uma crueldade, ignorância. Uma grande contribuição que o governo de Bolsonaro trouxe foi ignorância. O mundo introduziu ela. Eu tenho 83 anos e nunca pensei que ia acontecer uma coisa dessa. De terra plana... Toda essa ideologia. Ela tem uma eficácia tremenda em relação à cultura e destruíram tudo já. Não podemos negar isso..
Agora, a cultura viva está mais forte que nunca. Nós, aqui, conversando. Por exemplo, o movimento antirracista é enorme. O movimento dos Estados Unidos está influenciando o Brasil, então tem aquela. A empresária que só quer contratar negros, porque teve a revolução que aconteceu nos Estados Unidos e repercutiu imediatamente no Brasil. Então é um momento que a cultura está forte, a cultura, inteligência, artistas, músicos, artistas plásticos. Emicida, tem muitos... Um universo riquíssimo. Mas tem aquele chato do sertanejo universitário... Os filhos do agronegócio. Reúne milhões, é impressionante. São os filhos do agro, gente rica que inventou essa coisa de “sertanejo universotário”.
GG
Já que começamos um papo bom. Acho que esse comentário que você fez tem muito a ver com a primeira pergunta... Esses seus mais de 8o anos de vida e mais de 60 do Oficina... Como que um projeto que, muitas vezes, até gente de direita e de esquerda atribui como loucura, no sentido fraco da palavra, atravessa milênios com tamanha força e o que você acha que tem para ensinar em matéria de organização à vida e à política e cultura?
ZC
O teatro tem um poder muito grande, o teatro que desenvolvemos foi acontecendo no Oficina e começou ligado ao Stanislavski. Com atuação no inconsciente, mas não tem a ver com o inconsciente freudiano. O inconsciente da Rússia, dos filmes russos, do Tarkovsky, as peças do Tchekhov. Eles têm mil anos de cristianismo. Eles têm uma visão, uma cosmovisão de toda a bioesfera. Você lê Guerra e paz, tem um momento que o personagem, no meio da guerra, deita e fica vendo o céu, as folhas, a natureza. Eles têm uma grande ligação com a natureza.
Mesmo, inclusive durante o pior período soviético, citando Maiakovski. Até o Stalin chegar tinha um cinema muito forte. Mesmo Eisenstein, que foi proibido, Dziga Vertov…e depois teve uma retomada do cinema russo, a partir daquele da Arca russa do Sokurov…um filme magnífico no qual você tem a sensação que está na arca e vai encontrar com a Revolução. O filme é extraordinário Os cineastas russos têm essa visão cosmofágica, não ficam só na esquerda e direita. Os artistas russos, enfim, a literatura russa, a poesia e a música são muito fortes. Leon Tolstoi, um comunista místico. Um xamã.
Por que falar da cultura russa? Porque naquele tempo da Guerra Fria, ou se estava com os Estados Unidos ou com a União Soviética. Mas vamos falar da cultura brasileira: o governo do Jango tinha um lugar chamado Iseb, no qual nós do Oficina trabalhávamos com o Guerreiro Ramos e outras pessoas…No caso, a visão do então Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) -- e eu fui fã do governo do Getúlio, tanto que após o suicídio dele a cultural ganhou força: Bossa Nova, Teatro Oficina, Cinema Novo. Sem Getúlio não teria nada e o suicídio foi importantíssimo.
Com o João Goulart também teve um crescimento cultural forte. Mesmo depois do AI 5 tínhamos teatro. Coincidiu que no dia 13 de dezembro de 1968, foi editado o AI 5 a gente ouviu gente chegando para ver o Galileu Galilei. Tinha espião no Teatro Oficina. A polícia tentando nos prender. O Gil foi preso por fazer uma música... a gente conseguiu driblar a censura até um determinado momento. Nossa linguagem era diferente. A gente teve a sabedoria de não resistir. Conforme muda a situação você não pode continuar no mesmo lugar. Você tem de re-existir. Criar uma nova vida, uma nova estratégia. Mudar a estratégia completamente. Como neste momento. Agora, ficamos presos com o coronavírus. Estou preso até agora. Vocês têm mais liberdade, estão saindo... agora é um momento de atuar. Fazer um grande passeio, inclusive dia 30 de novembro...
O primeiro é dia 15, o segundo é dia 30. Dia 30 exatamente, é o aniversário de 40 anos dessa luta absolutamente rica! Que primeiro com o amigo e empresário Silvio Santos que queria trocar o terreno... O terreno estava com ele e fizemos espetáculo lá, armamos tenda e fizemos coisas dionisíacas lá. Circo, antropófago, bar, éramos amigos. Aí depois do golpimpeachment, os ovos foram tomados pelo mercado. O mercado todos inteiramente, aí aconteceu... Toda a proteção que tínhamos que vinha desde que o teatro foi tombado pelo grande geógrafo que tombou também a jureia...
Estou buscando fazer um ato forte. São 40 anos de uma luta que vou te contar... Teve um episódio maravilhoso do teatro bixiga que vieram milhares de pessoas e abraçaram o quarterão do bixiga. Milhares e milhares de pessoas... Tomaram banho de rua, uma manifestação de muitas pessoas. Temos de fazer de novo isso. Agora, o diabo do dia 30 é o segundo turno, temos de remarcar, vou avisar vocês.
GG
Geralmente as mais incríveis, estão sofrendo muito. Depressão, angústia, esse leão de areia que está devorando. As pessoas estão mais morrendo de suicídio que coronavírus, entre nossos amigos. Estou trazendo isso porque você é um dos pontos luminosos, uma primavera. Tinha um pássaro no bixiga. A pergunta é para uma geração, nesse momento que a barra está pesada e está duro mesmo... O ressentimento é impossível de sair. O que fazer? Qual o antídoto contra o tédio?
ZC
Não tenho um tostão. Compro tudo com cartão de crédito. Meu cartão de crédito vence dia 10 e estou desesperado. Tédio não existe. Não conheço tédio. Trabalho sem parar. Estou escrevendo um livro sobre a origem da tragicomédia-orgia no corpo na música relacionado a um livro do Nietzsche, A origem da tragédia proveniente do espírito da música. A música é corpo, atinge o corpo. Principalmente algo que não tinha no Nietzsche, era a cultura africana. A cultura da percussão... A gente considera uma macumba electro-candomblaica, totalmente ogã. Eu não acredito em messianismo. Ficar esperando Godot? Esperar o que quer que seja... Eu sou antimessianico total. Tenho cara de messiânico, mas sou contra. O Antônio Conselheiro era messiânico? Não era. Vocês são jovens, devem sentir muito mais que eu.
E, enfim, gozar é muito importante. Não sei, é mais gostoso gozar que se suicidar. O problema é que está tudo ligado com o valor que você dá à libido. A libido é a vida, se você desacredita da libido e passa a ser muito teórico, você pira e pode até se suicidar. Quem cultiva e tem libido, quem é de Eros... Quem é do tesão, é difícil se entediar. Todo tempo você encontra. Há coisas para fazer. Eu faço lives, reescrevi uma peça que já tinha feito sobre o Godot, vou começar a ensaiar. Vou começar a trabalhar em uma peça do
A natureza para mim é a infraestrutura da vida. Está todo mundo assim como teve em 68, uma comunicação internacional, exclusivamente por causa de uma descoberta. O mundo inteiro deu de cara com o aqui e o agora. Em 68, todos começaram a conversar com todos. Uma coisa antimessiânica, o oposto do que existe agora. O presidente batizou até de messias, ele se considera um messias. Você vive em uma sociedade completamente messiânica. O Oswald de Andrade, por exemplo, escreveu um texto maravilhoso... A crise da filosofia messiânica. Porque é uma filosofia, quando eu ficar rico... Quando eu morrer... Quando eu encontar alguém... Não existe. É aqui e agora. Essa peça Esperando Godot é interessante, parte da cabeça de vagabundos que estão esperando o Godot. Mas eu dei uma virada no final, tem um ator negro e jovem que vai fazer um papel do menino, mensageiro do Godot. Trás uma mensagem no início e depois traz uma mensagem da revolução. A mensagem de vocês, da vanguarda. Vocês, os índios, as mulheres, aliás, cadê as mulheres?
A Silvia, minha amiga, é a mais ativa, inclusive, ela está participando do Heliogábalo. Ela já inventou uma coisa com espelhos e o sol. Estamos nos reunindo toda sexta-feira com brasília que está estudando o Heliogábalo também. Hugo Rodas, também que é uruguaio... Nós estamos estudando juntos, mas sabemos que não vai dar. Essa peça não vai dar, é carnal e sexual, pansexual aliás. O Artaud se chama, nessa peça, o pederasta autônomo. Aliás, ele fica tarado nessa peça. Vocês viram que a inteligência artificial fez o retrato de todos os personagens do Heliogábalo. É impressionante o retrato. Deve ter saído hoje nos jornais, pega uma escultura e bota na inteligência artificial que ela recompõe como se fosse uma pessoa viva. Impressionante. Heliogábalo, é muito bonito mesmo. Com 14 anos, ele assumiu o poder em roma. Ele entra de costas pra roma, dando a bunda para roma. Faz com um cocheiro na parte central de roma que enraba ele. Pelo tamanho do pau... É uma doidera e é maravilhoso. Uma cultura que existiu ligado ao culto ao sol. O sol é o único deus. Para os índios também, se há deus é o sol. O sol está em nós e em lugar nenhum. Está em tudo.
JH
Zé, você citou o Oswald... A próxima pergunta é sobre a vacina antropófaga. O que seria essa vacina? Como ela pode prevenir a autofagia que vivemos hoje?
ZC
Nas bacantes, no rei da vela... Em muitas peças que fizemos são verdadeiras vacinas antropófagas, mesmo o roda viva... Quem viveu estas peças do Oficina entrou em um ritual antropófago. Desde o rei da vela, eu fiz o roda viva no rio de janeiro. Ficou em cartaz no teatro princesa Isabel. Roda viva era uma primeira peça do chico que fui convidado para dirigir. Na peça tinham 4 back vocal, os alunos de uma escola de teatro da época invadiram os ensaios. Invadiram os ensaios e tomaram conta de tudo. Tinham uma banda, Pereio, Antonio Pedro, Santiago. A grande direção veio do coro. Aconteceu uma coisa que não acontecia com a humanidade há muitos séculos. Mesmo maia road, na grande época do teatro. O coro não era o coro da Grécia, o coro bárbaro, terráqueo. O coro tinha todas as revoluções no corpo. A alimentar, sexual, política, ecológica. Essas pessoas eram completamente autônomas. Deu uma onda que explodiu na França, no Brasil, China, México. O mundo inteiro veio. O aqui e o agora. Todo mundo saía para rua para conversar. Durante 68, que foi um ano grave que acabou com o Ai 5. Foi um ano de extrema explosão cultural. O ano, exatamente, tinha feito em São Paulo e no Rio ao mesmo tempo do roda viva. Roda viva era feito dessa multidão arcaica, de um coro arcaico. Um coro com todas revoluções e que me fez a cabeça. A Silvia Werneck disse: põe a língua para fora... Aí me deu um ácido. Até 1984, tudo que fiz foi tocado com mescalina, ayuasca, don pedrito, enfim... Alucinógenos. Agora só posso maconha e vinho. Agora pouco fumei maconha. Teve uma coisa meio chata que aconteceu em casa. Essa coisa de ficar fechado em algum lugar provoca algumas coisas. Aí uma amiga quis voltar para casa. Estamos trabalhando junto. O fato de estar em quarentena, centena, sei lá... Para quem gosta de ler, gosta de saber o que está acontecendo, replicar os acontecimentos, eu até segui... Eu que sou como vocês, estamos em uma área muito em baixo. Não estou no mainstream. Já vivi no mainstream, agora eu estou completamente sem grana, tenho uma artista que me dá um pouco de dinheiro e um pouco da anistia da tortura. Não consigo pagar as despesas, cresceu muito o preço das coisas e até dia 10 preciso de uma grana. Se souberem de alguém que pode me arrumar uns 2 ou 3 pau que está faltando... É foda. Tudo com cartão de crédito. Esse mês está mais difícil. Mês passado fiz um negócio com Brasília porque queria estudar o Heliogábalo. Heliogábalo está sendo só conversa porque não dá para fazer aqui. Vamos trabalhar para fazer, se um dia não tiver mais essa peste de coronavírus. Talvez uma temporada sem, depois pode voltar. O mundo está muito ruim e temos de lutar. Acho muito importante este parque, este lugar, este vale. É um vale que foi descoberto por quem tombou o teatro, o geógrafo que era presidente do Condefat. Na gestão do João Carlos Martins. O João Carlos com a classe teatral toda tombou o teatro. Tombou também a serra da Juréia, mata atlântica. Percebeu com o geógrafo que o Oficina é um vale que começa no castelinho da Brigadeiro. Sabe o Castelinho da Brigadeiro? Quero ver se a sede do parque fica lá. Fazer um Machu Picchu, sabe? Um degrau, uma plantação. O teatro será feito no inverno quando não chove...Vai ser feito teatro e ensaios, porque é um teatro também, mas é sobretudo um parque verde. Não só para o povo do bixiga, que tem um larguinho mixuruca. Tem que ter um parque. Depois do coronavírus. Você vê, mesmo quando libera, tem filas enormes no parque. As pessoas querem respirar enquanto tem vida no mundo. A Amazônia, o Pantanal e, quer dizer, a própria degradação do planeta pelo mau cuidado com a natureza, ao lado dos madeireiros e fazendeiros. A natureza provoca a reação. Esse cuidado e descuido com essa natureza causa isso. Quem tem razão é aquela menina sueca. A greta. A geração dela tem muita gente assim como na minha geração, muita gente que está vendo isso. Tem que cuidar do nosso planeta. Essa manifestação do coronavírus é resultando disso. Quem é da pauta ligada à ecologia tem uma importância extraordinária. É preciso passear de um lugar para outro dizendo que o ministro do ambiente tem que sumir.
HA
Gostaria de emendar um ponto. Retomando o Marx Selvagem do nosso amigo Jean. O Marx ele tem vindo à ordem do dia, voltou à ordem do dia nas redes sociais. Tem suscitado vários debates, até com a reação dos liberais... Os liberais se sentem inconformados com esse lugar. Vamos questionar a extrema direita, mar marx não. Sabemos dos problemas do socialismo real, mas essas experiências trouxeram questões importantes. O próprio socialismo real teve problemas mas deu em tarkovski, muita coisa linda. Como retomar o marx selvagem nesse lugar?
ZC
Acho uma loucura, porque pega o Marx e Engels apaixonados pela natureza, pelo primitivo. Como agora eu acho que a grande direção social, política e cósmica é o povo indígena, o polo quilombola as mulheres. Não é mais a infraestrutura econômica, não é mais o capitalismo. O capitalismo é uma ideologia qualquer. Uma ideologia que está sendo desmontada, por exemplo, pelo Thomas Piketty. O segundo livro dele é sobre a desigualdade, esse livro é uma possibilidade de transformação, porque essa doença é global. Se não fôssemos uma sociedade global, essa dinâmica não seria. Talvez alguma ilha ou outro lugar seja inafetada.
A pandemia que pegou todo mundo, como aquele país que tinham manifestações diárias. Eles não param, é impressionante. Pessoas sendo presas e torturadas, mas eles não param. É como a coisa do George Floyd, não para. O Chile, aqui ao lado, não para. Todos no começo da pandemia tiveram de dar uma retornada até para entender o que estava acontecendo. Agora, já podemos agir. Com máscara e guardando distância, mas começar a passear. Com coisas escritas, sem falar muito...
GG Pensando no aqui e agora. Estou aqui na quarentena, certo? Quando eu saí da rua, em um sentido mais amplo, de repente eu vi uma árvore e foi maravilhoso. Eu queria filmar tudo. Bom, estamos em um momento crucial e tenso, a natureza pegando fogo... Como a esquerda, em um sentido amplo.
ZC
Esquece o Bolsonaro e foca em ligar a esquerda, ligar os partidos. Aqui e agora. Já é uma força. Como o Heliogábalo, a lua ou até o sol. É uma força junta, concreta e palpável. Não tem sentido essa competiçãozinha entre Boulos e o cara do PT, do PC do B. Tem que juntar todo mundo, agora. Essa mensagem tem de ecoar hoje. Me dirijo ao Lula: Lula você adora o Boulos. Não há tempo para perder. Seu candidato pode ter um cargo maravilhoso em um governo de esquerda. Pode fazer muito mais que se candidatar. Lula é a pessoa que pode fazer isso. Por favor, mande isso para o Lula. Não é ser profeta, está na cara. Nesse momento tem um candidato que tem axé que está em terceiro lugar, a Erundina que era do PT e é do PSOL está velha, mas afirmativa e positiva. Ela vai fazer um governo tão bom quanto da primeira vez e os outros candidatos vão participar deste governo. Se não tiver vitória, só a esquerda unida já é uma vitória. Continuarmos nesse tédio de esperar o segundo turno para apoiar é irracional. Lula, você sabe das coisas e ama o Boulos e a vida. Vamos fazer uma reunião com a esquerda, vamos botar todos junto que fica muito melhor depois será um choque para o adversário. Uma coisa é enfrentar um sujeito de um partido como o PSOL que está crescendo que tem muitas pessoas apostando nele, artistas e outros. Os outros candidatos que são menores, tem uma multidão de candidatos que se juntam para fazer uma frente ampla. Pode ter um democrata que não seja de esquerda mas pelo menos democrata. Uma frente ampla. Esse momento não é para brincadeira. Lula, você é capaz, faça isso. Eu te amo. Sempre votei e votarei em ti, mas eu acho que é o momento de criar uma frente. Estou com 83 anos e vivi muita coisa, isso está na cara só não vê quem não quer. O Lula está morrendo de vontade de apoiar o Boulos e devemos ser fiéis à intuição. O rapaz dos transportes será ótimo e terá um cargo excelente, o do Pc do B também. Vamos criar. Até 2022, essa frente vai estar muito forte.
JH A gente percebe que a extrema direita tem facilidade de se comunicar e arregimentar diversas pessoas mesmo que com muitas mentiras, e a esquerda está sofrendo de um certo gabinetismo.
ZC A esquerda tem de acordar nessa situação, precisa de união. Ela não é nada sozinha. Uma frente ampla de esquerda e democrática. Uma esquerda democrática. Pode entrar pessoas democráticas, que querem a democracia. Tem de ser assim. Uma frente de esquerda democrática.
JH
Qual deve ser a linguagem dessa frente?
ZC
Se os partidos todos se ligarem, terão percepção muito maior. Cada partido vê um partido. Se todos se unem, há grande crescimento. Ligados em uma causa maior e mais possível, mais viável causando uma onda de confiança muito grande no Boulos, na esquerda e na democracia. A democracia está mais que ameaçada. O governo desse bosta só tem milicos, civis enquanto governo, mas estão queimando a Amazônia. Não vou falar nada que todo mundo sabe... O Trump vai perder e já perdeu a eleição. Pode ser que morra. Não sei. Ele vai dar um jeito de aparecer. A aparência dele, não falava uma palavra e com dificuldade de respiração. Uma bandeira louca.
HA
O Trump está em vias de perder, já estava mal nas pesquisas e seja lá o que aconteceu, ele caiu.
ZC
Foi o pior debate da minha vida, ele se fudeu. Não conseguia fala direito e não dava para articular as ideias.
ZC
É depois do dia de todos os santos e dia dos mortos, que são dois dias que no teatro fazemos peça, o teatro explode. Estão aceitando a morte e aceitando a democracia dos santos e demônios. São dois dias históricos e dia 03 vai imergir disso. E é mundial isso. A cristofobia é mundial, não sou cristão, mas a maioria é.
GG
Zé, nessa quarentena você tem sonhado muito?
ZC
Eu comecei sonhando, mas agora não tenho sonhado e estou chateado. Queria sonhar mais. Sonho também escrevendo peças. Fiz essa peça em 2001 no Rio de Janeiro com Selton Mello e agora refiz a peça, muito mais lúcido. A velhice se você não vai para um Alzheimer, ela traz uma sabedoria de senador. Nós, todos os velhos, devíamos ser senadores da República. As pessoas pensantes, claro. Os velhos, negros, índios e mulheres muitas mulheres. Heliogábalo, primeira coisa chegando em Roma. Manda embora todos os senadores e entrega o senado às mulheres. Vivemos um momento único na vida com essa pandemia. A tua geração não pode perder. Repetir discurso antigo.
Está na cara. Se a esquerda se reunir com os democratas, a gente vence. Porque isso atualiza e muda a qualidade da esquerda e da democracia. A democracia é muito importante mesmo aos que não são de esquerda. Quem não é de esquerda que é legal?
GG
Difícil...
ZC
O pessoal todo antifascista. Bota todo mundo nesta luta. Paulo Sérgio Pinheiro, Caetano, Gil. Tem muita gente ao lado.
GG
O Caetano foi para esquerda outra vez.
ZC
Sempre foi... Ele tinha a maior admiração pelo Prestes. O pai dele era comunista, ele fala disso. Agora, seria bom que eles lutassem por essa frente de esquerda.
GG
Zé, queria te falar isso. Nessa quarentena aconteceu o que eu queria tanto. Li Os Sertões. Obrigado ao Oficina por disponibilizar a peça online. Eu já tinha visto a peça na época, mas de ver Os Sertões e ler o texto... A gente que é mais radical lembra do pensamento de guerrilha, muito do Vietnã, mas Canudos... Não é momento de retomar a força de Canudos?
ZC
Dia 05 de outubro de 1897 foi o dia do massacre. Finalmente o exército brasileiro conseguiu contornar toda a resistência e acabar com Canudos. Aliás, a história continua a viver. Porque o exército brasileiro saiu de Canudos e foi para o Rio de Janeiro. Os soldados que foram ao Rio de Janeiro não foram pagos, não receberam o soldo porque a República estava falida. Eles foram morar com o pessoal de Canudos, no morro da favela. Quer dizer, o Canudos hoje está no Rio de Janeiro, sobretudo. A proximidade do morro e a cidade é completamente promíscua. É necessário um salve ao velho Brizola que botou as crianças para aprender em todas as favelas; ele foi à favela e teve que enfrentar toda a reação surgida por causa de sua ação com os favelados. É uma coisa incrível, viva Brizola e Darcy Ribeiro, Viva Getúlio Vargas. Essas pessoas, grandes líderes que movimentaram muitos movimentos e fases.
Claro, já está nessa, mas a Carmen é uma líder maravilhosa. Eduardo, você é uma pessoa legal e escolhida a dedo para ser o grande corifeu dessa empreitada. Você conseguir a união da esquerda e dos democratas. Não me sai da cabeça o Paulo Sérgio Pinheiro, ele tem que entrar nessa também. Uma das pessoas mais importantes do Brasil atualmente, em um cargo de direitos humanos internacional. Tem a honra de estar na lista dos antifascistas. Todos os antifascistas deveriam estar nessa campanha de união democrática esquerda e tudo. Movimento negro, movimento LGBT, movimento indígena, tudo. Só assim, a gente começa a sair dessa. Começa. A política é uma coisa muito velha. Tem de ser diferente, entrar na vida. Os artistas têm que apoiar dando a cara, dando sugestões. O artista é muito maluco, tem muita invenção. Eles sabem quem são os grandes artistas democráticos. Temos que fazer uma corrente enorme pela democracia.
GG
Quero mandar o Inaudito. E agora acabamos de fazer um filme sobre a China “aquele que viu o abismo”.
ZC
O que você achou da China? Meu sonho de criança era representar para milhões de chineses.
GG
Eu acho a China fantástica e formidável. Fico puto porque as pessoas não conhecem. Os chineses são maravilhosos na câmera. Na rua todos querem aparecer. Nosso filme tem muito improviso então o Leo estava atuando e, de repente, aparecia um chinês e já começava a contracenar. As mulheres chinesas, o povo muito receptivo.
ZC
Que maravilha, muito obrigado! Eu consegui ver, pensar e estar vivo com vocês. Circulou e produziu causas importantérrimas das quais não se pode fugir nesse momento, é muito grave esse momento. Passear, passear e fazer manifestações com máscara e distância. Ao mesmo tempo, criar essa frente ampla. Com a esquerda e os artistas. Merda!