A Liberdade é Feminina, Plebeia, Dionisíaca e Negra

(Por Beatriz de Barros Souza e Hugo Albuquerque)

Duda Sansão




(Gravura de Hector Parondi Bernabó, o Carybé, o mais argentino dos baianos) 

Não tem na Rússia ao menos aquela liberdade que tem na Itália. Há uma ditadura do proletariado? Não! (Benito Mussolini, 1921)

A supressão do poder de Estado é o objectivo que se colocaram todos os socialistas, Marx incluído e à cabeça. A verdadeira democracia, isto é, a igualdade e a liberdade, é irrealizável sem a realização deste objectivo. (Vladmir Lenin, 1919)

Aqueles que desistem da liberdade essencial para comprar um pouco de segurança temporária não merecem nem liberdade nem segurança. (Franklin Delano Roosevelt, 1941)

Oh, Liberdade, quantos crimes cometeram em teu nome? (frase atribuída a Madame Roland no cadalfalso em 1792)

Devemos, com um último ato de autoridade nacional, para sempre garantir o império da liberdade no país de nosso nascimento; devemos tomar qualquer esperança de nos reescravizar longe do governo desumano .... no final, devemos viver independentes ou morrer". (Declaração de Independência do Haiti de 1804)


Quem é contra a Liberdade? Aparentemente, ninguém. Mas Ela é, possivelmente, o tema mais recorrente no debate político contemporâneo – e seu significado é, não raro, fruto de uma série de polêmicas e mal-entendidos. A hegemonia liberal, sentida, sobretudo, após a queda da União Soviética, coloca a Liberdade no centro do debate. Mas de que Liberdade falamos? 

Há quem aceite a explicação mais simples, da Liberdade enquanto um significante vazio, um termo “pega-tudo” a que cada qual atribui o significado que bem entende. Mas não é bem assim. À Liberdade é prestado culto há mais tempo do que se pensa nos primórdios do que hoje é considerado como “civilização ocidental” e ela tem um significado bem determinado, diverso do debate liberal.


A Liberdade é Feminina

Quem tem medo da Liberdade?  Madame Roland, a caminho do cadafalso no período do Terror da Revolução Francesa, teria se perguntado quantos crimes teriam sido cometidos em nome Dela antes de, literalmente, perder a cabeça. Roland, uma girondina, se via em meio à espiral de caos de uma revolução nascida em nome da Liberdade contra à ordem tradicional: a Liberdade, ela mesma um signo pagão. 

Ainda que sem um par arquetípico entre os gregos, na Roma dos primórdios da República, Libera aparece como par de Líber – cujo festival se dava em 17 de março, ironicamente na data em que madame Roland nasceu – e sujeitos à Ceres, deusa das colheitas e da fartura, com a qual formavam a chamada Tríade Aventina

Muitas outras pessoas morreriam e matariam por Ela, sobretudo quando nos pórticos dos Estados Unidos da América, uma Estátua da Liberdade expressa o poder e a opulência do mais poderoso Império da atualidade: a Liberdade tem a forma de uma mulher. A deusa Libera, versão romana da deusa grega Eleutheria.

A Liberdade é não apenas um substantivo feminino como uma divindade feminina, uma ideia feminina, uma energia feminina.

 

A Liberdade é Plebeia

Libera é uma corruptela latina para o grego Eleutheria, que não era apenas um nome próprio, mas um termo que guarda um significado próprio: é o processo de fazer parte do povo deixando de ser escravo, cujo termo em grego é laios, mas cuja raiz antiga origina termos como “liturgia”. 

Apesar de não parecer na etimologia, essa relação era óbvia entre os romanos, para quem não era possível pensar conceitualmente a Liberdade fora do ambiente público. Em termos lógicos, é possível pensar algo análogo ainda hoje: só se pode ser livre, ou discutir a liberdade, quem vive em coletividade – e isto independe da existência do sujeito moderno.

Em tantos momentos, Libera ou Eleutheria aparecem como deusas próprias ou epítetos de outras divindades, mas são aparentadas, via de regra, a Dionísio/Baco, o deus do vinho e da festa. A liberalia celebrada, em 17 de março, em honra a Líber, o que precedia os Bacanais – primeiro como ritos de passagem masculinos, depois de liberdade e liberação gerais e escandalosos. 

Libera e Líber, filhos de Ceres, formavam com este a chamada Tríade Aventina: a trindade de deuses cultuados pela plebe, e marcam a passagem da Roma tradicional para uma Roma republicana, quase que em oposição a tríade de divindades patrícias associadas à fundação de Roma – Júpiter, Marte e Quirino (a versão divinizada de Rômulo, fundador da cidade).

O culto a essa nova trindade se inicia, não por coincidência, nos primórdios da República, quando o tirânico Lúcio Tarquínio, o Soberbo, foi expulso de Roma, pondo fim à sua tirania familiar e à monarquia. A Tríade Aventina e o seu culto são tanto mais representação de tempos verdadeiramente agitados em Roma, nos quais o fim da monarquia representa o que poderíamos chamar de Revolução avant la lettre.


A Liberdade é Dionisíaca

Quando Nietzsche opõe o dionisíaco ao apolíneo no Nascimento da Tragédia e é uma intuição que faz os antigos relacionarem a deusa Liberdade à casa de Dionísio: ela não é linear, harmônica ou perfeita, mas é a expressão errante das pulsões próprias à vida. Longe de buscar uma síntese entre o apolíneo e o dionisíaco na forma de tragédia, isso já temos no cotidiano, evoquemos o dionisíaco: e a Liberdade não está do lado do lado de Apolo. 

Entre os antigos romanos, de fato, havia o par Líber-Libera. A identificação de Líber com Baco – o  Dionísio romano – é inevitável, e Líbera/Eleutheria é sua irmã. Mas a sucessão da Liberalia pelos Bacanais – que reservaram um maior papel à sexualidade feminina – como ritos de passagem em Roma identifica a própria Liberdade com a pulsão de vida e com todo o significado que Dionísio/Baco carregam.

Muito depois da revolução republicana, Libera será sincretizada com figura de Ariadne, heroína do mito do Minotauro, que depois de idealizar a forma como seu amado, o herói Teseu, derrotaria a criatura e fugiria do Labirinto, acaba abandonada, sendo acolhida por Dionísio, um amante imortal que não a abandonará.

O mito da fraternidade some aqui e surge enquanto amor: Ariadne é amante de Dionísio e não irmã dele, mas a ideia de Libera-Ariadne novamente encontra referência em um espaço dionisíaco e não com o apolíneo – tardiamente, Libera se torna ela mesma a bacante por excelência.

Deuses e divindades do mundo antigo expressam energias, afetos e energias de maneira meta-personificada e arquetípicas. Os antigos ritos greco-romanos têm mais a ver com as religiões de matriz africana do que com as religiões do Livro e, assim, em sua corporeidade, materialidade e simbolismo precisam ser entendidas e lidas.


A Liberdade é Negra

Frantz Fanon, a propósito da catarse (catharsis) coletiva, afirma que 

(...), em toda coletividade, existe, deve existir um canal, uma porta de saída, através do qual as energias acumuladas, sob forma de agressividade, possam ser liberadas. Só que nas sociedades ocidentais contemporâneas, esses canais foram construídos, em sua maioria, pela branquitude e para que afirmasse a sua primazia sobre a da negritude -- notadamente, aquela negritude escravizada e traficada de África para as Américas e a Europa.

A Liberdade dos gregos e dos romanos é retratada branca, não por emanar qualquer relação com a branquitude, mas por eles serem povos “brancos”. Não há qualquer relação entre Libera ou Eleutheria e a branquitude – que sequer era entendida nesses termos entre os antigos –, só que, certamente aquela energia que ela expressava não encontra repouso na branquitude contemporânea – uma redundância, por sinal. 

A noção da religiosidade greco-romana como dita, tem mais a ver com os ritos de matriz-africana no Brasil que com qualquer religiosidade branca existente. Inclusive, em matéria de candomblé, por ser um rito negro, os brancos encontraram o seu lugar no culto –  embora a recíproca não seja verdadeira, ou não tenha sido na colonização americana, quando os negros eram proibidos de realizar cultos, mas eram incluídos de maneira bisonha ou pelo catolicismo brasileiro ou pelo protestantismo americano.

Curiosamente, quando ouvimos Petros Tabouris recriar o que seria a musicalidade dos antigos, nos deparamos com uma sonoridade mais parecida com os ritmos negros do que com música clássica ou neoclássica. A corporeidade que os negros inserem na música do século 20 é, na verdade, um comum que as culturais ancestrais de África partilhavam com os gregos e os romanos. 

O mundo branco do Ocidente do século 21, ao contrário, guarda léguas de distâncias do mundo antigo no qual proclama se fundar. O próprio escravagismo e colonialismo moderno, por certo, guardam mais relação com a barbárie que destruiu o mundo antigo que com seus congêneres greco-romanos. Inclusive porque, como lembram Deleuze & Guattari, as sociedades antigas se fundavam em uma idéia de blocos móveis de dívidas finitas – nada mais diferente do mundo em que vivemos. 

Se literalmente, a Liberdade é Feminina, Pública e Dionisíaca. Sua aparição nesta pós-modernidade só pode ser negra, como só pode ser negra há muito: uma vez que a negritude é quem a põe em causa por ser posta em causa. Se a Liberdade é o estatuto da emancipação social em seus primórdios, a emancipação é negra no mundo de hoje –  porque o Negro é n cores.


Haiti: a Liberdade é a Revolução, a Revolução é a Liberdade e ambas são negras

Entre as lutas pela Liberdade, há uma que acabou por ser ocultada, esquecida, mas cuja história insiste em aparecer, resistir, relembrar; é o Haiti, expressão mais radical do movimento revolucionário francês que se converte em revolução nacional quando os brancos na metrópole se recusam a abolir de vez a escravidão nas colônias.

O Haiti, contudo, produz um giro de perspectiva profundo, ao notar que a recusa metropolitana em abolir a escravidão negra só poderia ter uma razão: sua noção de cidadania estava umbilicalmente ligada à branquitude. A nacionalidade haitiana nasce, pois, fundada na negritude, mas não exclui o branco: um haitiano é um negro e os que se tornam haitianos tornam-se juridicamente negros – como os poloneses que guerrearam contra as potências que tentaram subjugar o Haiti livre. 

O giro perspectivo dos haitianos de um só golpe identificou duas coisas: como dispositivo racial funciona como um motor secreto das estruturas de “cidadania” e “nacionalidade” e, depois, como a branquitude funciona de maneira excludente.

Na ocidentalidade moderna, os iluministas franceses rapidamente descobriram que: “As demandas crescentes dos negros e mulatos livres eram muito mais perigosas [que as de judeus] para a continuidade do status quo.” (HUNT, 2009, p. 105). Desse modo, forjaram uma “República” mais solidária à noção de liberdade religiosa e de Estado Laico do que a ideais de independência nas suas colônias.

Susan Buck-Morss no Hegel e o Haiti identifica a enorme contribuição que os haitianos deram para a formação do jovem Hegel, naquele momento identificado com a maçonaria radical, naquele momento engajada na liberação do Haiti e na abolição internacional da escravidão – naquele momento sobretudo negra:

No século XVIII, a escravidão havia se tornado a metáfora fundamental da filosofia política ocidental, conotando tudo o que havia de mau nas relações de poder.1 A liberdade, sua antítese conceitual, era considerada pelos pensadores iluministas o valor político supremo e universal. Mas essa metáfora política começou a deitar raízes justamente no momento em que a prática econômica da escravidão - a sistemática e altamente sofisticada escravização capitalista de não europeus como mão de obra nas colônias - se expandia quantitativamente e se intensificava qualitativamente, ao ponto de, em meados do século XVIII, ter chegado a sustentar o sistema econômico do Ocidente como um todo, facilitando, paradoxalmente, a expansão global dos próprios ideais do Iluminismo que tão frontalmente a contradiziam.

A Liberdade, que era no mundo antigo o instituto sacro-jurídico pelo qual o escravo se tornava parte do povo – dentro de um conceito de escravidão temporário e não racializado – não poderia encontrar repouso no dito liberalismo nascente, cuja base era um ideário escravagista em termos teóricos e também práticos. Esse movimento teve em John Locke, um de seus principais filósofos e senhor de escravos, talvez o maior expoente desse aparente paradoxo. 


A Liberdade contra o Liberalismo

Como um culto dionisíaco, plebeu e feminino pode ter se tornado o que se tornou no mundo de 2020? A Liberdade adentra a modernidade como autodenominado neoclássico: uma retomada de valores antigos que, na verdade, nunca existiram. 

A liberdade dos liberais não encontra lastro histórico, mas é parte da construção teológica-política da ascensão burguesa no qual a liberdade poderia ser muito bem substituída pela salvação, que todos querem, mas nem todos conseguem, o que sugere o mercado como a instância para a resolução disso, no qual “os vícios individuais geram uma virtude coletiva”.

A Liberdade ressurge como um elemento legitimador da nova ordem burguesa como Liberdade da própria Liberdade como Liberação da própria Liberação, ironicamente dos fortes em relação aos fracos – na famosa passagem de Tucídides, o Diálogo Meliano, repetida por Varoufakis em seu E os fracos sofrem o que devem?. Entre os antigos, isso jamais se chamou de Liberdade.

A própria estátua da Liberdade americana, ironicamente, é um sincretismo de Libera com Sophia, um deidade gnóstica, o que se pode constatar pelos sete espigões em torno de sua cabeça – e ainda que dada aos americanos já depois do fim da Guerra Civil Americana e da escravidão, o gesto coexistia com o avanço do segregacionismo para conter os negros agora livres, mas ainda muito longe de serem cidadãos plenos.

Não deixa de ser curioso o paradoxo de um mundo no qual a ideologia dominante se assenta sobre uma idéia ela mesma aplicada contra sua tradição e contra a lógica: uma liberdade conseguida às expensas da servidão alheia e seu simbolismo expresso. 

Quase como a novilíngua orwelliana onde paz significa guerra – pior ainda, não vivemos em um mundo no qual uns se fazem livres por fazerem outros servirem a eles, como escravos ou trabalhadores “livres”, mas sim onde são todos servos à sua maneira. Uns por serem prisioneiros, outros por serem os carcereiros que apesar do privilégio relativo, igualmente moram na prisão.

Beatriz de Barros Souza, 31, é Mestra em Direitos Humanos pela USP, Bacharela em Relações Internacionais pela PUC-SP e atualmente faz Doutorado em Psicologia na UFES, com bolsa do CNPq.

Hugo Albuquerque é advogado e editor da Autonomia Literária, mestre em direito constitucional pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, onde também se graduou. É membro do IHUDD, o Instituto Humanidade, Direitos e Democracia.

Referências

BUCK-MORSS, Susan. “Hegel e Haiti”. Novos estud. - CEBRAP (n. 90). São Paulo, 2011, pp. 131-171.

CARON, Giuseppe Rafael. Discursos de Benito Mussolini: Permanência e Mudanças (1919-1922). Mestrado em História pela PUC-SP, 2015.

DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. O Anti-Édipo: Capitalismo e Esquizofrenia. Tradução Luiz B. L. Orlandi. São Paulo: Editora 34, 2010.

FANON, Frantz. Pele Negra, Máscaras Brancas (1952). EDUFBA: Salvador, 2008.

HUNT, Lynn. A invenção dos Direitos Humanos. São Paulo: Cia. das Letras. 2009.

MAFFEZZOLLI, Marcone de Oliveira.  A Noção de Liberdade na Ética em Epicuro. Mestrado em Filosofia pela UFRN, 2010.

NIETZSCHE, Friedrich. O Nascimento da Tragédia (1872). Cia das Letras, 2020.